O MUNDO PERCEBIDO PELOS OLHOS
Lá atrás, no primeiro tempo de escola, a professora nos mandou decorar os cinco sentidos: audição, olfato, paladar, tato e visão. Ensinou que com eles o corpo percebe o que está ao seu redor e consegue avaliar o som, o cheiro; notar o sabor de um alimento e sentir a sensação ao tocar em algo. Deu destaque à visão: “com ela dá para admirar as cores, perceber a forma das coisas, distinguir as pessoas, os animais, as árvores, as nuvens no céu, as estrelas durante a noite”, e por aí.
Esse mundo simplificado, dos cinco sentidos aprendido na infância dificilmente vou esquecer. Mas com o passar do tempo, de repente, me deparei que o meu olhar já não é mais o mesmo. As coisas que vejo ao redor não são tão simples assim. Os olhos se tornam seletivos e distinguem os objetos por um outro tipo de valorização, que vai além do belo e do feio. O fato é que não sou apenas o que eu vejo, mas como vejo. Meu olhar ficou menos crédulo e mais cuidadoso. Estudos e leitura modificam as pessoas. O conhecimento aprofundado remove o universo de clichês e visões ingênuas.
Foi essa a emoção que senti numa determinada tarde de domingo no Museu D’Orsay, em Paris. A circunstância da visita me colocou à frente de um dos Autorretratos de Vicent van Gogh (sem esquecer que eles fez vários). Aparentemente um homem feio com rosto esguio, nariz desproporcional, olhar fixo e sisudo. Alguém ao meu lado falou que é preciso olhar a obra com um sutil cuidado. É necessário penetrar na alma de van Gogh e procurar entender o sentido de cada traço, feito pacientemente, dia após dia, até chegar a esse fiozinho frágil, preciso, único que expressa, através de contornos e lineamentos, uma entrada no reino do inconsciente do seu mundo pessoal, misteriosamente dolorido, cheio de tristezas de uma vida perturbada.
Esse comentário mudou a percepção do quadro. Passou a irradiar a genialidade do artista e sua capacidade de revelar por meio de o estado de sua alma. O quadro tornou-se interessante. Hoje, a casa de leilões Sotheby’s, de Nova York, vende os seus quadros contabilizando milhões de dólares. Recentemente, a tela “L’Allée des Alyscamps”, foi leiloada por US$ 66,3 milhões.
Há aqueles que enxergam um museu como uma coisa chata e depressiva. Pergunto, por que duas pessoas com a mesma impressão na retina podem ver coisas tão diferentemente?
O certo, para apreciar uma obra de arte, é preciso de alguma informação sobre ela. Se eu nunca ouvi falar sobre van Gogh, nunca li sobre ele, não estou preparada para admirá-lo. É claro que os mesmos objetos, as mesmas visões, não provocam as mesmas respostas entre as pessoas. “Um papel de parede é mais bonito que esta cena marinha”, foi a crítica feita ao quadro de Claude Monet, “Impressão, nascer do sol”, pelo pintor e escritor Louis Leroy.
O que vemos depende tanto daquilo que olhamos como daquilo que nossa experiência visual-conceitual prévia nos ensinou a enxergar. Um olhar treinado busca pela decodificação do encoberto, do mágico, do genial. Ele vai além da imagem material. Saint-Exupéry disse que ao ver uma janela fechada, esta excitava a sua imaginação, porque por trás dela, alguém lê, alguém bebe, alguém faz confidências, alguém faz amor ou alguém apenas dorme. Poderia acrescentar que nela circulam os verbos do cotidiano: amar, sofrer, procurar, perder, ganhar, sonhar, esperar e sentimentos como saudade, remorso, culpa, inveja, ciúme, traição, medo e tristeza.
Machado de Assis no romance Dom Casmurro colocou em um recinto fechado a sua mais famosa personagem, Capitu. “Essa bela mulher que traz consigo o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça”. Para os leitores de Machado de Assis, Capitu passa a ser real. Contemplam-na com o olhar interno. No imaginário, traçam o perfil dela como uma mulher bonita e sedutora, vista com uma luva preta que encobre o seu olhar de ressaca, deixando apenas um cantinho sutil para os olhos. Atitude que a torna ainda mais atraente e mais misteriosa.
Nessa altura confesso que o velho conceito sobre os cinco sentidos ensinado pela primeira professora não perdeu o seu valor, mas ficou substancialmente outro. O mundo ingênuo da aparência cai por terra quando temos conhecimentos. O mundo que vemos muda, fica relativo e complexo. Nossa vida interior fica mais rica porque enxergamos um pouco além da fachada.
Fonte: Por Themis Pereira de Souza Vianna/ZeroHora/Revista Donna de 12/7/2015