POR MAIS TOLERÂNCIA
Um dos mais celebrados autores da Europa na atualidade, o holandês Arthur Japin chega ao Brasil neste mês para mostrar porque seu interesse em figuras históricas o transformou em best-seller no mercado editorial. Ele é uma das atrações da Feira do Livro de Canoas, que começa neste fim de semana. Seu mais recente livro, O HOMEM COM ASAS (Editora Planeta), esmiúça a vida do brasileiro Santos-Dumont tocando, inclusive, em temas controversos, como sua sexualidade. Seria o inventor do avião mesmo gay? Japin afirma que sim. Na entrevista, o autor – cujo companheiro, Benjamin Moser, é biógrafo de Clarice Lispector e também participará da feira na Região Metropolitana – destaca que a sexualidade, hoje, importa menos, mas que o abuso físico e mental de pessoas consideradas “diferentes” deve ser discutido. Em Canoas, serão 15 dias e cerca de 160 atividades gratuitas realizadas até 9 de julho.
Por que você é tão focado na vida de Santos-Dumont?
Sou fascinado por outsiders, pessoas que se sentem diferentes na sociedade e não se encaixam nela. Essas pessoas, muitas vezes ridicularizadas quando jovens, têm que lutar para sobreviver e virar aquilo que gostariam de ser. Elas têm soluções criativas para seu isolamento justamente porque precisam disto. Santos-Dumont era um. Ele não gostava de sua vida no “chão”, onde ele não pertencia. Ao contrário, seguiu um sonho e inventou um modo de escapar: ele fez o impossível – inventou o avião para nós!
Esse interesse tem algo de pessoal?
É claro que o meu fascínio por outsiders ocorre, porque sempre fui um. Na escola, sofri abuso físico e mental. Aliás, o abuso mental, as palavras, são piores. As feridas se curam, mas as palavras permanecem para sempre com você. Trabalhei para encontrar meu lugar no mundo transformando histórias assim em textos.
O enredo do livro começa a partir do coração embalsamado de Santos-Dumont. Como você soube disto?
Pesquisando, bati de frente com esse fato incrível, uma daquelas coisas que mesmo um escritor não se atreveria a criar – mas a vida é mais estranha que a ficção. Rotineiramente encontro isso: as pessoas facilmente acreditam no que você inventa, mas as coisas que realmente ocorrem são muito estranhas para parecerem verdadeiras (por razão desconhecida até hoje, o legista, na época, removeu o órgão e o conservou em formol. O mesmo, hoje, está no Museu Aeroespacial do Rio).
O livro é um sucesso, inclusive no seu país, a Holanda. Isto o surpreende?
Felizmente, todos os meus romances se tornaram best-sellers, por isso não me surpreendi, mas estou muito feliz que tantos holandeses agora saibam quem é Santos-Dumont. Antes, ninguém o conhecia, e agora todos se perguntam: como é possível que não tinha ouvido falar deste homem maravilhoso? Esta é uma das coisas mágicas sobre ficção histórica: ao adicionar emoção aos fatos, posso trazer as pessoas de volta à vida. É muito gratificante.
O livro diz que Santos-Dumont era gay. Isto ficou claro?
Sim, não tenho nenhuma dúvida. Às vezes, ele dava a impressão de querer casar com uma mulher e tirou fotos com algumas delas, mas ninguém se enganou com isso. Muitos homossexuais (inclusive eu) tiveram casos com mulheres, embora eu não ache que Santos-Dumont o tenha feito. A maneira como ele andava, falava e se vestia atraía comentários em todo o mundo. Mesmo jornais norte-americanos escreveram sobre seu comportamento feminino. Ainda assim, esse homem, que amava tricotar e bordar, desafiava, diariamente, a morte. Ele era um verdadeiro herói. Foi muitas vezes ridicularizado e disse: “Eu sei como as pessoas riem de mim, mas assim como estou no ar, eu já não as escuto”.
A sexualidade ainda importa?
Ninguém na Europa ou na América do Norte pergunta sobre ser gay ou não. A sexualidade das pessoas não é interessante, apenas um fato da vida. Noto que no Brasil é, ainda, um problema. As pessoas me dizem: “todo mundo sabe que ele era gay, mas ninguém nunca menciona isso”. Se isso for verdade, é uma questão de época. A ideia de que isso o tornaria menos heroico é ridícula. Gays sempre lideraram o mundo com suas artes e criações – desde Leonardo ou Michelangelo a Tchaikovsky, ou quem quer que você imagine hoje.
Você e Benjamin Moser compartilham a mesma paixão por figuras brasileiras. Como isso ocorreu?
Eu já tinha viajado para o Brasil antes de conhecer Benjamin. Quando nos encontramos em Nova Iorque, em 2000, uma das primeiras coisas que ele me disse era sua paixão por Clarice. O Brasil é muito presente em nossas vidas e nossa casa, a música sempre toca por lá – temos as paredes cobertas pela coleção de livros raros do Brasil feita por Benjamin. As pessoas parecem se surpreender que dois escritores estrangeiros sejam tão encantados pela cultura brasileira. Todos os jornalistas me perguntam: “Por que você, um europeu, escreve sobre o Brasil?” Mas a minha pergunta para eles seria: “com um país tão rico em cultura, porque, no mundo, eu não faria isso?”
Fonte: Jornal do Comércio/Caderno Panorama Literatura/Cristiano Vieira em 23 de junho de 2016.