130 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
O trabalho fundamental do historiador não é escrever memórias. Não conta o que viu ou viveu, mas o que as fontes lhe permitem. Três fontes de luta levaram ao tardio fim da escravidão dos negros no Brasil: os combates nas ruas e fazendas, com manifestações e fugas cada vez mais densas de escravizados para quilombos; a guerra feira pela incansável imprensa abolicionista, tendo homens, como José do Patrocínio e Antônio Bento na linha de frente; a operação no parlamento, onde brilharam homens como Joaquim Nabuco. A abolição não foi uma concessão da Coroa nem o mero resultado de décadas de pressão inglesa. Foi, acima de tudo, uma conquista de pessoas mobilizadas.
Os três maiores líderes abolicionistas, que jamais esmoreceram, nos diferentes campos de batalha, eram afrodescendentes: Luís Gama, André Rebouças e José do Patrocínio. Gama militou no campo do Direito, usando a lei de 7 de novembro de 1831, a primeira a proibir o tráfico internacional de escravos ao Brasil, para libertar quem de direito já era livre por ter sido trazido ao país depois da aprovação dessa norma ou ser descendente desses africanos duplamente espoliados na sua liberdade. Rebouças foi um articulador extraordinário, diplomata da causa negra, atuando nos bastidores da política e até nos salões da nobreza. Patrocínio consagrou-se como o maior jornalista do abolicionismo.
Negros e alguns brancos visionários uniram forças nas décadas laboriosas que levaram à abolição. Rui Barbosa e Joaquim Nabuco desmontaram as bases legais e filosóficas da escravidão com textos fulminantes, dados internacionais, relatórios e discursos no parlamento. Foram intelectuais da causa. Antônio Bento fustigou a elite escravista com o seu radical jornal “A Redempção”, talvez o mais vanguardista dos panfletos abolicionistas, e organizando fugas de escravizados. A Justiça era escravista até o surgimento de um ativismo judicial disposto a fazer cumprir leis que não pegavam. O trabalho desses militantes, que cometiam crimes aos olhos da imprensa conservadora, forçou o Exército a não querer mais cumprir o triste papel de capitão-do-mato na captura de escravos.
Os abolicionistas lutaram contra inimigos ardilosos com o escritor e político José de Alencar, e o senador fluminense Paulino de Souza, para quem a Lei Áurea sempre seria: “Inconstitucional, antieconômica e desumana”. Alencar votou contra a Lei do Ventre Livre. Defendia que a escravidão era um bem para o escravo e que a “cria” pertencia ao dono da escrava assim como a cria da vaca. Vociferava: “Vós, os propagandistas, os emancipadores a todo o transe, não passais de emissários da revolução, de apóstolos da anarquia. Os retrógrados sois vós, que pretendeis recuar o progresso do país, ferindo-o no coração, matando a sua primeira indústria, a lavoura”.
Nunca é demais repetir Joaquim Nabuco: “Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar”.
Fonte: Correio do Povo/CS Caderno de Sábado/Juremir Machado da Silva em 12/05/2018.