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Como Curar um Fanático
Como Curar um Fanático

RIDÍCULOS FANATISMOS

 

“O fanático é um ponto de exclamação ambulante.”  A frase, eu daria um bom dinheiro para obter o privilégio de sua invenção.  Ela é de Amós Oz, escritor que fortalece o pensamento ético em nossos dias.  De fato, o ensaio intitulado COMO CURAR UM FANÁTICO (Companhia das Letras, 2016), posto entre outros textos seus, faz de Oz um analista que espalha luminosidade em regiões escuras e feias da consciência e corações humanos.  Disse que infelizmente não tive a oportunidade de cunhar a frase estarrecedora sobre o fanático e a pontuação gramatical.  Sempre me incomodou o fenômeno sintetizado nas poucas palavras de Amós Oz.

 

Entre os colegas universitários, encontrei, em décadas, alguns tipos profissionais.  Primeiro, os que pesquisam de verdade (e a verdade) sem dogmas ou rigor ortodoxo.  Trata-se da minoria absoluta nos campi.  Depois, os que repetem teses, sem nada inovar.  Em filosofia, aqueles seres ecoam os escritos em voga no momento.  Assim, se lucrativo, inclusive para ganhar bolsas de estudo, citam Marx, Gramsci, Adorno e Horkheimer, Habermas, Foucault ou Agamben.  Docentes e alunos de semelhante tendência fazem o que denomino “filosofia xerox”.  O seu critério de rigor é a maior consciência possível entre o texto e a aula e a frase original da fonte usada.  Claro, no mercado do prestígio e verbas de “pesquisa”, cada mestre do pensamento tem sua cotação.  Além dos totens do momento, tem os os “clássicos”.  Assim, o mascate de Platão, Aristóteles, Descartes, Spinoza, Kant, Hegel, Nietzsche alardeia o valor de sua cópia “rigorosa” e se considera único proprietário do rigor acadêmico.  Tal marca registrada tem o sinal hipocrático do rigor mortis.  Naquela escola existe o fanatismo de conveniência, dirigido contra quem jura por mestres em baixa na bolsa de valores acadêmicos.  Para qualquer assunto, mesmo estranhos às preocupações do filósofo abusado, é imperioso citar longos trechos do Mestre.

 

Merleau-Ponty distinguia entre o grande racionalismo do século 17 e o pequeno racionalismo dos séculos 19 e 20.  As preciosas ridículas indicadas acima se levantam contra as grandes ortodoxias – a voga romântica, hegeliana, marxista, freudiana, positivista – mas erguem altares às pequenas.  Para qualquer tema em debate, respondem com exclamações:  “Agambem dixit!  Foucault dixit!  Habermas dixit!”.  Temos aqui a versão nova da idiotia tratada com sarcasmo por Inmanuel Kant.  “Para você, o que é a lei natural?”. Resposta:  “A lei natural, segundo Aristóteles, é assim e assado”.  Mas, insiste o desagradável interlocutor, “Para você, o que é a lei natural?”.  Resposta:  “A lei natural segundo Aristóteles, Tomás de Aquino, Spinoza...”.  Atualização:  “O que você pensa da crise nas grandes religiões mundiais?”.  Resposta:  “A crise ética segundo Agamben, segundo Foucault, segundo Habermas...”.  Nada contra citações relevantes em análises.  Mas se o exercício do pensamento é toldado pela reza, ao estilo corâmico, some o pensamento.  O leitor pode ter acesso às fontes citadas, não precisa do atravessador acadêmico.

 

Sempre que topo, em seminários, teses e cursos, com pessoas assim, recordo os meninos e meninas de Recife, Salvador, Ouro Preto e Tiradentes que buscam seu honesto dinheirinho como guias turísticos.  “Esta igreja foi construída pelo Capitão X, em mil seiscentos e tanto, para a irmandade Y...”.  Se o ouvinte chato pergunta:  “e quem era o Capitão X, como funcionavam as finanças da irmandade Y” ou algo similar, a criança mostra contrariedade, seus olhos lançam xispas e tudo recomeça “Esta igreja foi construída pelo Capitão X, em mil...”. Assim é o “rigor” de muitos métodos praticados nos campi.  Fanatismo pedante, seitas acolhedoras:  patrocinam os fiéis e lançam anátemas ou caçoadas contra as demais seitas.  Nada que não tenha sido impiedosamente exposto por Richard Sennett em O DECLÍNIO DO HOMEM PÚBLICO.

 

Mas pior fanatismo é o ideológico.  Em provas escritas, trabalhos finais de curso ou projetos de pesquisa, o sinal gráfico de exclamação trai o fanatizado.  Por volta de 1980, uma colega pediu-me para analisar certo projeto de pesquisa sobre a Igreja Católica.  Li o texto – repleto de exclamações – e dias após ocorreu o seminário para o exame.  A tese retomava o marxismo singelo: o mundo será socialista, logo a Igreja Católica também (a infraestrutura define a súper...).  Para tal profecia a candidata reuniu alguns textos católicos, entre eles  “o” documento do Vaticano II.  As fontes eram escassas no plano metodológico e na teoria.  Com paciência, reuni uma bibliografia de cem livros, além de indicar fontes primárias relevantes.  No seminário, ouvi a jovem dizer que “a cada vez que muda o modo de produção, a Igreja muda”.

 

Comecei minha arguição parabenizando a moça.  “O seu trabalho é digno de Marx e de Weber”.  Logo o sorriso sumiu de seus lábios pois terminei:  “Digno de Marx quando seus furúnculos o deixavam enfurecido na Biblioteca de Londres.  Digno de Weber, no instante em que ele era internado por insanidade”.  De fato, nem Marx nem Weber conseguiram determinar de m odo tão delirante o nexo entre o econômico e o religioso.  Disse também que o Vaticano II não tinha “o” documento, mas inúmeros.  E que ela se referia, sem saber, à Gaudium et Spes.  Passei-lhe a lista bibliográfica e fiquei estarrecido.  “Não vou ler tais livros, porque prejudicaria minha pesquisa”.  A candidata era do PCdoB, partido que na época queria entrar para as Comunidades Eclesiais de Base, “reunir a massa, aplicando uma rasteira nos padres”.  Não se tratava de uma tese universitária, pois, mas de panfleto para ajudar “a Causa”.  Fanatismo exclamativo.  Resultado: a candidata foi dispensada pela orientadora, o PCdoB foi expulso das Comunidades de base, a ideologia recebeu o merecido.  Muitas mentes foram dominadas pelo fanatismo ideológico.  E, como disse Soljenítsin, “os bandidos de Shakespeare seriam piores, se tivessem ideologia”.

 

Fonte:  ZeroHora/Roberto Romano (Professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp) em 21 de fevereiro de 2016.