COMO INCENTIVAR A CULTURA LOCAL
UM ANO + ALEGRE
Além de promover e reforçar as identidades locais e criar opções de lazer, o apoio às múltiplas formas de arte desenvolve um dos setores econômicos mais promissores em todo o mundo.
Uma cidade é feita de prédios e calçadas, ruas e praças, mas também e um patrimônio imaterial forjado a versos, acordes, pinceladas e outras formas de expressão artística. Essa riqueza cultural gera milhares de empregos e movimenta bilhões de reais. Em todo o Rio Grande do Sul, a chamada economia criativa, design e tecnologia – representa pelo menos R$ 11,7 bilhões ao ano, e a maior fatia desse tesouro está na Capital. Por isso, apoiar as artes não é apenas uma forma de promover e reforçar as identidades locais, mas de desenvolver um dos setores econômicos mais promissores em todo o mundo.
Conforme o estudo da Fundação de Economia e Estatística (FEE) A ECONOMIA CRIATIVA DO RS: ESTIMATIVAS E POTENCIALIDADES, do pesquisador Tarso Núñez, a criatividade responde ainda por mais de 116 mil empregos em todo o Estado e, mais uma vez, mais da metade dessa cifra cabe a Porto Alegre. Não há, porém, como precisar o percentual.
- As pessoas não estão muito acostumadas a perceber de forma mais concreta a importância desses setores porque nossas estatísticas são limitadas. É fácil medir quantas sacas de soja são produzidas, mas ainda é difícil medir relações com natureza menos formal e material, como um profissional que participa da produção e vários filmes ao longo de um ano – exemplifica Núñez.
Algumas comparações ajudam a destacar a importância da indústria cultural. O termo “economia criativa” foi criado na Austrália, em 1994, e adotado pelo Reino Unido três anos depois, quando os ingleses se deram conta de que a participação do setor musical no PIB havia superado o automobilístico.
- Com a globalização, a maior parte dos produtos não é mais feita em um só lugar. Um dos caminhos para crescer é se inserir em uma dessas cadeias globais de produção, mas é muito caro fazer isso tentando atrair uma montadora de automóveis, por exemplo. Por outro lado, ficar preso a uma cadeia tradicional exportando soja não é o ideal. A economia criativa permite participar dessas cadeias produtivas com baixo custo, porque depende basicamente de criatividade e intuição – analisa Núñez.
Para isso, são importantes apoios governamentais ao setor. Mas, atualmente, a crise econômica que afeta o Estado e a cidade é um complicador. A prefeitura deixou de investir em 22 eventos culturais no ano passado, incluindo o Carnaval, e o Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural (Fumproarte) – um dos principais instrumentos de financiamento a artistas na Capital – enfrenta dificuldades.
- O Fumproarte chegou a apoiar 50 iniciativas em um ano. Mas, desde 2016, não houve novos apoios – diz o coordenador do Observatório da Cultura do município, Álvaro Santi.
A Secretaria Municipal da Cultura informa que, no ano passado, o fundo pagou R$ 179 mil pendentes de editais de anos anteriores e, em 2018, deve quitar outros R$ 420 mil editais lançados em 2014 e 2015. Mais de R$ 400 mil referentes a projetos de longas-metragens de 2016 deverão ser pagos de forma parcelada. Por meio de nota, a prefeitura informa que “a prioridade do Fumproarte é sanar todas as dívidas herdadas da gestão passada. Com os esforços dos gestores municipais, mesmo diante da crise, o Fumproarte deverá regularizar todos os pagamentos em atraso até 2020”.
Outro desafio é a formação de um público mais presente – principalmente em eventos de artes consideradas “elitizadas”, como concertos de música erudita ou exposições de artes visuais. Nada menos do que 67% da população da Capital jamais assistiu a uma apresentação de música clássica, 58% nunca viu uma apresentação de dança e 43% nunca pisou em um teatro, conforme a pesquisa Usos do Tempo Livre e Práticas Culturais dos Porto-Alegrenses, do Observatório da Cultura.
- A importância da arte envolve inclusive a segurança pública. O contato com a música, com a pintura, pode tirar pessoas que estão na rua, na criminalidade. A cultura é fundamental para uma sociedade não adoecer, não enlouquecer – acredita o ator e presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado (Sated/RS), Fábio Cunha.
Saiba mais sobre a relação da Capital com as artes em: bit.ly/culturalocal
COMO APOIAR
Adoção de Livros:
A Biblioteca Pública do Estado permite “adotar” uma obra rara com necessidade de restauração, informações em www.bibliotecapublica.rs.gov.br
Sol Maior:
Sem fins lucrativos, ONG oferece educação musical e oficinas de dança gratuitas a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social www.solmaior.org.br
Destinação do IR:
Por meio da Lei Rouanet, você pode doar 6% do seu imposto de Renda a projetos culturais previamente aprovados. Se tiver de pagar R$ 5 mil de impostos, por exemplo, pode destinar R$ 300. Empresas podem conceder até 4% do IR. Coo funciona: o investidor faz a doação até o último dia do ano corrente. O beneficiário emite um recibo, que deve ser utilizado como comprovante na declaração de IR do ano seguinte para restituição ou abatimento.
Para pesquisar projetos, é possível acessar o portal de visualização do sistema de apoio às leis de incentivo à cultura: www.versalic.cultura.gov.br
Crowdfunding:
São as vaquinhas virtuais. Diferentes sites permitem escolher projetos por tipo (digitando “teatro” ou “dança”, por exemplo) e cidade para receberem recursos via cartão de crédito, boleto ou outros meios. Confira alguns: Kickante (www.kickante.com.br) Catarse www.catarse.me) Benfeitoria (www.benfeitoria.com)
Recomendações a serem seguidas antes de doar: leia com atenção a história da campanha que solicita recursos. Cheque os links das redes sociais e do site, presentes na página da campanha em busca de referências. Em caso de dúvida, entre em contato com o criador do projeto via mensagem privada.
A MÚSICA PEDE PALCO:
Porto Alegre tem um histórico de revelar desde músicos eruditos como Araújo Vianna – que dá nome ao auditório – a representantes da cultura regional como Renato Borghetti e sucessos do rock nacional como Engenheiros do Hawaii. Ainda assim, representantes da cena local se queixam da dificuldade de encontrar palcos para exibir seu talento para os próprios conterrâneos.
- Hoje, o cenário da música é complicado em todo o país. Mas temos o sentimento, aqui, de que santo de casa não faz milagre. Músicos talentosos, principalmente quando não representam essa cultura de entretenimento, não conseguem vitrine. Por isso, tem gente que costuma fazer shows na Europa e ainda busca mais espaço aqui mesmo – avalia o músico e integrante do Sindicato dos Músicos do Estado Patrick Acosta.
Ele lembra de fenômenos recentes, como o violonista Rodrigo Nassif, que costuma exibir seu talento em cidades da Europa e do resto do país, mas ainda é pouco conhecido pelo grande público da Capital. A explicação para isso, segundo Acosta, pode estar em uma combinação de dificuldades de acesso a recursos, sucateamento de equipamentos culturais da cidade e um ambiente pouco favorável às iniciativas menos comerciais.
A boa notícia é que não falta potencial para o mercado da música em solo gaúcho. Um estudo do pesquisador Tarson Núñez estima que, em todo o Estado, a cadeia de atividades da música movimenta nada menos do que R$ 660 milhões por ano – e a maior fatia disso fica na Capital, embora não seja possível precisar a fração.
O mercado profissional da música também não se limita a cantores e instrumentistas. No total, incluindo professores de música, compositores, afinadores, confeccionadores de instrumentos e técnicos de radiodifusão e gravação, pelo menos 12,4 mil pessoas trabalham diretamente nesse setor no Rio Grande do Sul. Mais uma vez, a Capital é o principal polo gerador desses empregos.
O levantamento publicado pela Fundação de Economia e Estatística (FEE) conclui que “a partir das mudanças tecnológicas recentes, as atividades musicais têm um grande potencial de inserção no mercado global, o que sinaliza boas perspectivas de crescimento. Em razão disso, as políticas de fomento ao setor não devem se limitar à ótica de promoção e apoio à cultura local, mas ser formuladas e implementadas também como parte de uma estratégia de desenvolvimento econômico”.
Confira espaços de aprendizado e de espetáculos em: bit.ly/musicalocal
FALTA PÚBLICO PARA AS ARTES VISUAIS
As artes visuais contam, em Porto Alegre, com pinacotecas, museus, ateliês e artistas gabaritados para abastecer galerias com pinturas, esculturas, gravuras, fotografias e toda sorte de criações. Mas anda faltando, nessa equação artística, um componente fundamental na cidade: público.
Aproximadamente metade da população da Capital – principal centro cultural do Estado – jamais colocou os pés em uma exposição. Conforme a pesquisa Usos do Tempo Livre, do Observatório da Cultura do município, 52,9% dos moradores nunca visitaram uma mostra de fotografia, e 49,8% dizem jamais ter visitado um acervo de pinturas, gravuras ou esculturas.
Em um cenário de dificuldades econômicas, em que as fontes governamentais de recursos enxugam as verbas destinadas a produções artísticas por meio de editais, o apelo público poderia fazer a diferença. Membro da diretoria da Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, Kátia Costa sustenta que o desafio de atrair um número maior de frequentadores é ampliado pela inexistência de uma formação cultural mais sólida da população desde a fase escolar – mas também pelo pouco espaço nos meios de comunicação:
- Sentimos, sim, uma falta da educação para a cultura nas escolas públicas ou privadas. Mas também de apoio em geral nas mídias impressas, de rádio e TV para a divulgação de exposições, por exemplo.
A falta de informação, de fato, é apontada por 15% dos moradores de Porto Alegre como principal motivo para não frequentar eventos de artes visuais. A razão principal, porém, é mesmo o desinteresse: mais de um terço dos entrevistados afirma não se interessar por pintura ou escultura. Uma das maneiras de aumentar a relevância popular poderia ser, apenas, ir a um espaço de exposição e convidar alguém para ir junto – 13% das pessoas dizem não ir a exposições por simples falta de companhia.
Em tempos de crise econômica, dar uma passada em um museu pode ser uma pedida ainda melhor. Boa parte dos espaços não cobra ingresso, como as pinacotecas Ruben Berta e Aldo Locatelli ou o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagolli (Margs).
Veja onde visitar mostras e atividades culturais em: bit.ly/arteslocal
O TEATRO PRECISA DE TEATROS
A situação das artes cênicas em Porto Alegre apresenta tons dramáticos marcados, nos últimos anos, pelo fechamento e espaços de apresentação importantes e pela perda de recursos governamentais. Para fazer frente a crise, produtores tentam buscar novos modelos de financiamento e investir na internacionalização dos grupos teatrais. Enquanto esse enredo se desenrola, o apoio da população às iniciativas locais ganham ainda mais relevância.
Artistas lamentam a perda de palcos públicos, como o Teatro de Câmara Túlio Piva e a Usina do Gasômetro (onde fica o Teatro Elis Regina), fechados para reformas, e privados, como o Teatro Novo DC. Além disso, obras na Caixa Cultural e no Multipalco Eva Sopher seguem sem previsão exata de conclusão.
- A precarização dos espaços é apenas o reflexo de uma falta de política pública para o setor. Não há uma política cultural clara – observa o diretor do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, Alexandre Vargas.
A classe também se ressente da escassez de recursos municipais por meio do Fumproarte, que nos últimos dois anos deixaram de impulsionar produções cênicas. O público, que poderia ajudar a financiar o setor, ainda é arredio. Pesquisa do Observatório da Cultura demonstra que apenas 1,8% da população de Porto Alegre costuma ir ao teatro aos finais de semana. O dobro desse percentual, por exemplo, prefere não fazer nada.
Em busca de novos caminhos, foi lançado no final do ano passado o Intercena, projeto de internacionalização de artes cênicas do Rio Grande do Sul e realizado em Porto Alegre. O objetivo, conforme Vargas, que coordena a iniciativa, é capacitar os produtores locais para buscar novos públicos fora do país. Para isso, poderiam até traduzir espetáculos para outras línguas como espanhol ou francês.
- Já tivemos bons resultados. A Argentina propôs um convênio para intercambiar companhias de teatro, e indicamos algumas companhias para participar de uma feira na China, entre maio e junho – afirma Vargas.
No link a seguir, veja números sobre o consumo de teatro: bit.ly/teatrolocal
UM POLO DE CINEMA
Porto Alegre abraçou como poucas cidades uma forma artística nascida há mais de 120 anos na França. A Capital é um dos polos nacionais de produção cinematográfica, com uma sólida filmografia e capacitação técnica, e assistir a filmes na sala escura é a atividade cultural preferida entre os moradores da Capital.
Conforme dados do Observatório da Cultura do município, ir ao cinema é a atividade preferida na cidade nas horas livres aos finais de semana, com 17,3% das respostas. Perde apenas para ir a parques ou praças e passear no shopping. Assistir à televisão vem em sexto lugar, com 11% das preferências – deixando claro o gosto da cidade pelo audiovisual. A realização de festivais e programas para TV reforça essa vocação.
Porto Alegre marcou seu papel como referência cinematográfica dentro e fora do país, nas últimas décadas, graças a produções como VERDES ANOS (1984), de Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, o célebre curta ILHA DAS FLORES, de Jorge Furtado (1989), ou O HOMEM QUE COPIAVA (2003), também de Furtado. A Casa de Cinema de Porto Alegre, que produziu esses dois últimos, é uma das razões para a projeção da Capital nas telas brancas com uma sólida produção de curtas, médias e longas-metragens.
A cidade também se destaca na produção para TV, por meio de produções locais e de material publicitário.
- Fazemos muitos programas de TV também. O UNIVERSO Z é uma série feita aqui veiculada em mais de 40 países, por exemplo – diz a presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado (Siav), Daniela Israel.
A cidade ainda conta com eventos como o Fantaspoa – maior festival de cinema dedicado a filmes de gênero fantástico da América Latina, que ocorre até o dia 3 de junho – e o Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre (Frapa), a ser realizado em julho. Já a mostra Ela na Tela, que exibirá obras dirigidas e protagonizadas por mulheres, ocorrerá em novembro.
Apesar da força audiovisual de Porto Alegre, produtores ainda enfrentam dificuldades para conseguir acesso a recursos – principalmente municipais e estaduais – e disputar espaço de exibição com grandes produções de fora.
Para consultar onde fazer cursos de cinema e TV, acesse: bit.ly/cinemalocal
O DESAFIO DA LITERATURA
Porto Alegre tem tradição de abrigar escritores renomados, como Luis Fernando Verissimo ou Mario Quintana, e editoras pujantes, mas a luta diária para promover a literatura na cidade depende em bom grau do trabalho de autores nem tão famosos e de livreiros de pequeno ou médio porte – em uma espécie de versão contemporânea de David contra Golias.
O gigante, nessa atualização da história bíblica, é o desafio de promover a leitura em um país pouco habituado aos livros. Embora Porto Alegre esteja em uma região privilegiada pelos bons índices de alfabetização – 97% contra uma média nacional de 91% para pessoas com 10 anos ou mais, conforme o Censo 2010 – ainda é significativo o percentual da população da Capital que não se interessa em ler.
Quase metade dos moradores não botou os olhos em um livro nos 12 meses anteriores, e um terço afirmam não gostar, não ter interesse ou paciência para literatura. Para o presidente da Associação Gaúcha de Escritores, Christian David, falta estímulo público.
- Temos muitos autores bons e algumas editoras, geralmente pequenas, têm apoiado os escritores locais. O que falta é política pública de leitura – diz David.
Ele se queixa de que, nos últimos anos, um dos principais programas municipais para formar novos leitores, o Adote um Escritor (pelo qual as escolas recebem recursos para adquirir obras e recebem a visita de um autor escolhido), estaria perdendo fôlego:
- Já teve cerca de R$ 1 milhão, hoje tem algo ao redor de R$ 400 mil.
O secretário de Educação de Porto Alegre, Adriano Naves de Brito, afirma que o programa segue ativo e contará com pelo menos R$ 300 mil este ano. O secretário afirma que o programa está em fase de escolha dos autores que visitarão as escolas, e que haverá recurso para aquisição de exemplares:
- O orçamento já foi de quase R$ 1 milhão, mas quase metade disso ia para custear o vale (recurso repassado a servidores para compra de livros, o que deixou de ser oferecido ainda em 2017). O resto está mantido. O núcleo do programa é o encontro entre alunos e escritores.
Feiras e eventos literários, como a célebre Feira do Livro, ajudam a impulsionar o setor na cidade. Em 8, 9 e 10 de junho, por exemplo, ocorrerá a 5ª Odisseia de Literatura Fantástica, com feira, exposição, bate-papos e oficinas.
Quer pesquisar o acervo de bibliotecas online? Clique em: bit.ly/literaturalocal
Fonte: Jornal ZeroHora/Marcelo Gonzatto (marcelo.gonzatto@zerohora.com.br) em 27/05/2018