CASTELO QUE GUARDA PARTE DA HISTÓRIA DO RS ABRIRÁ AS PORTAS
Pedras Altas – Região Sul – População: 1.928 pessoas — Índice de Desenvolvimento Humano Municipal: 0,64 (vai de 0 a 1) – Salário-médio da população: R$ 2.424 – Bioma: Pampa – Fonte da economia: agricultura de soja, trigo, leite e criação de gado
Construção de 1913 pertenceu a Assis Brasil e foi cenário da assinatura do tratado de paz que deu fim à Revolução de 1923
Um pacato município gaúcho, isolado por estradas de chão batido, abriga um centenário castelo de estilo europeu que mudou a história do Rio Grande do Sul. Os seis andares de amplos aposentos foram lar de Joaquim Francisco de Assis Brasil, político gaúcho de influência nacional. Após viver dias de abandono, o castelo, in augurado em 1913, foi comprado em março deste ano por uma família de advogados empenhada em reabrir as portas a turistas e a historiadores.
Os 36 cômodos concentram antigos móveis, livros, fotografias, diários e cartas que retratam a vida de poderosos da Primeira República, no início do século 20. A hipnotizante biblioteca particular, uma das mais raras do Brasil, reúne mais de 15 mil livros, incluindo títulos de colecionadores, com o um exemplar de 1782 da Enciclopédia, dos franceses Diderot e d'Alembert.
A joia rara está encravada em uma granja de 300 hectares na pequena Pedras Altas, cidade de menos de 2 mil habitantes da Região Sul. O castelo, inspirado em palácios medievais europeus, foi construído para abrigar com conforto a esposa de Assis Brasil, Lydia Pereira Felício de São Mamede, descendente da nobreza de Portugal. Estudado, viajado e poliglota, Assis Brasil foi um rico estancieiro e político que articulou a Revolução de 1923. O conflito acabou mediante um tratado de paz assinado na sala-de-estar do castelo.
Até março deste ano, a granja estava sob posse dos 20 descendentes de Assis Brasil, que discordavam sobre o destino do castelo — revitalizar, sob custo milionário, ou vender o patrimônio. Do dissenso, surgiu o abandono: o mofo cresceu nas paredes, a pintura do teto caiu, fotografias desbotaram, objetos foram saqueados e as pesadas portas de ferro fecharam-se ao público.
MUDANÇA
O cenário mudou quando um dos herdeiros comunicou ao advogado de Santa maria Luiz Carlos Segat, 56 anos, que a granja estava à venda. Segat e os três filhos buscavam uma propriedade para plantar soja e viram na oferta uma oportunidade. O terreno foi adquirido no nome dos filhos de Luiz Carlos, os advogados Rafael, 36, Gabriela, 33 e Kamilla, 30.
O valor da transação não é tornado público, mas as obras de revitalização interna foram estimadas em R$ 10 milhões. O valor será obtido com verbas públicas da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e com patrocínio de empresas por meio da Lei Rouanet, algo comum para construções históricas. A família deseja abrir pousada e restaurante para sediar eventos e casamentos.
Antes da compra, Segat sequer sabia quem era Assis Brasil. Ao pesquisar, encantou-se com o valor simbólico do local e criou a Associação Cultural do Castelo de Pedras Altas, da qual é presidente. Tornou-se um aficionado e, hoje, reconta a história da granja com riqueza de detalhes enquanto leva ZH a um passeio na propriedade.
Se a família possui um castelo milionário, Luiz Carlos descreve uma infância pobre, como filho de uma faxineira e de um pedreiro. Formou-se como técnico em Agropecuária e diplomou-se em Direito apenas aos 38 anos.
— Olha como é a vida. Eu gostava muito de estudar e sonhava em comprar uma enciclopédia, daquelas que vendiam na porta de casa. Hoje, chego aqui e tenho a primeira enciclopédia escrita no mundo – comenta.
RELÍQUIAS
No castelo transbordam itens históricos. Há um carro presenteado a Assis Brasil por Henry Ford, poltronas e mesa onde foi assinado o acordo de paz que terminou com a Revolução de 1923, biombo de madeira com assinaturas de figuras como Machado de Assis e Barão de Rio Branco, além de objetos de época. A restauração da estrutura interna deve levar um ano, mas o acervo deve levar mais tempo. A ideia é abrir para visitação externa em setembro e para entrada interna até dezembro de 2023.
QUEM FOI JOAQUIM FRANCISCO DE ASSIS BRASIL (1857-1938)
Advogado, político e pecuarista, Assis Brasil nasceu em São Gabriel e articulou a Revolução de 1923. Foi deputado na legislatura que criou a nova Constituição brasileira e ajudou a redigir a Constituição gaúcha. Diplomata em Buenos Aires, Lisboa e Washington, Assis Brasil ajudou o Barão do Rio Branco a negociar a compra do Acre pelo governo brasileiro. ÉW considerado o pai do Direito Eleitoral e da Expointer. Casou duas vezes e teve 12 filhos. Morreu no castelo de Pedras Altas.
O QUE FOI A REVOLUÇÃO DE 1923
O movimento armado buscava depor o governador do RS, Borges de Medeiros, que tinha 25 anos no cargo e reduzira incentivos ao setor agropecuário. O conflito durou menos de um ano e opôs partidários de Borges (chimangos) a apoiadores de Assis Brasil (maragatos), que tentara se eleger como governador, mas perdera em eleições fraudadas. Mais de mil pessoas morreram no conflito. O fim se deu com o Tratado de Paz de Pedras Altas, assinado no castelo de Assis Brasil. Borges se comprometeu a sair do poder após o fim do mandato.
— Borges tinha uma política econômica de desenvolvimento global, de não privilegiar nenhum setor. Então, não protegia mais o setor pecuarista, afetado pela crise econômica do pós-Primeira Guerra. Borges precisava de dinheiro para colocar em prática o projeto de dragagem do porto de Rio Grande e cobrou dívidas do setor pecuarista — relata Fábio Kuhn, professor de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Já Assis Brasil era ligado a uma elite da pecuária que perdeu benefícios. Ele era um homem do seu tempo, inserido em uma classe social, com interesses econômicos e políticos afetados — descreve.
UM ACERVO AINDA INEXPLORADO
A importância do acervo é tão grande que a família Segat firmará um convênio com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) para pesquisadores restaurarem parte dos itens do castelo. A professora DE Museologia Noris Leal comandará uma equipe de 15 servidores e alunos dos cursos de Museologia e de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis na empreitada. Desde março, o grupo cataloga o inventário e, em breve, iniciará o restauro de obras de arte, móveis, fotografias e documentos.
— O acervo é um dos mais ricos do Brasil, não só pela biblioteca, mas por tudo o que existe no castelo. É um acervo inexplorado que conta muito da história política do Brasil República. Quando estiver aberto, promoverá fontes de pesquisa até então não utilizadas. É importante não só para a história do Rio Grande do Sul, mas também do Brasil — afirma a museóloga.
A disponibilização do acervo poderá trazer novos detalhes acerca da Revolução de 1923 e da vida de Assis Brasil, diz o professor Fábio Kuhn.
— A correspondência de Assis Brasil com diversas autoridades permite revelar detalhes desconhecidos. A historiografia se vale muito da correspondência privada para entender as atitudes dos homens públicos. Se esse castelo estivesse na Europa ou nos Estados Unidos, já teria uma fundação que o teria reformado, seria um museu com cobrança de ingressos e o arquivo estaria disponível a pesquisadores — diz Fábio Kuhn.
MEMÓRIAS
Para os herdeiros de Assis Brasil, mesmo que o castelo tenha mudado de dono, ficarão para sempre as memórias da avó Lydia e o legado do avô que mudou a história do Rio Grande do Sul.
— Vovó Lydia era maravilhosa, culta e bondosa. Saiu da Europa, veio a Pedras Altas e fez projetos sociais, ajudou a criar o hospital da cidade — conta Lydia costa Pereira de Assis Brasil, 68 anos, neta de Assis Brasil que viveu 20 anos no castelo, entre 1998 e 2018. Ela não esconde o orgulho do avô:
— O Assis Brasil não perdia um segundo da vida, para ele tudo tinha um fundamento e uma razão de ser. Deixou o legado de que a gente deve ter um ideal e seguir esse ideal.
Fonte: Zero Hora/Marcel Hartmann (marcel.hartmann@zerohora.com.br) em 14/08/2022