COM A PALAVRA FERNANDA TORRES
UM PAÍS QUE ODEIA A SUA CULTURA É UM PAÍS QUE SE ODEIA.
Atriz e escritora, 52 anos, junto ao artista visual Vik Muniz, será a primeira palestrante da edição 2018 do Fronteiras do Pensamento, em 14 de maio, no Salão de Atos da UFRGS.
Conhecida por seus trabalhos como atriz de TV, teatro e cinema, Fernanda Torres tem se destacado na literatura. Seu segundo romance, A GLÓRIA E SEU CORTEJO DE HORRORES, saiu em 2017, contando a história de um consagrado ator que se envolve em um turbilhão profissional e pessoal, ao mesmo tempo em que testemunha as mudanças socioeconômicas em um Brasil cada vez mais fora do prumo.
Um tema correlato – os dilemas do artista em uma época na qual as vozes da representatividade reivindicam se fazer ouvir sem porta-vozes – deverá motivar sua conferência na abertura do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre, dia 14 de maio. Ela falará ao lado de Vik Muniz, artista visual brasileiro consagrado no Exterior. Nesta entrevista, concedida por telefone, a atriz e escritora reflete sobre a posição do artista hoje, critica a massificação dos costumes e lamenta a baixa popularidade do humanismo na era da estatística – mas percebe uma nova onda vindo por aí.
Você pode adiantar o teor da sua conferência?
Vou partir de um trecho de um livro do Roberto Schwarz, crítico de quem sempre gostei, que diz que as casas brasileiras – quando fala da época do Machado de Assis – eram feitas de taipa, na sua maioria erguidas por mão de obra escrava. E, conforme a civilização brasileira foi se sofisticando, por cima das paredes de taipa entrou um reboco onde começaram a pintar paisagens europeias (no ensaio AS IDEIAS FORA DO LUGAR, do livro AO VENCEDOR AS BATATAS, Schwarz cita o manuscrito ARQUITETURA RESIDENCIAL BRASILEIRA NO SÉCULO XIX, de Nestor Goulart Reis filho). Acho que hoje a cultura enfrenta esse problema: o de ser esse papel de parede em uma hora em que os movimentos identitários e de raça ganharam voz pela internet e querem falar por si mesmos. Até uma época atrás, o artista, na sua maioria branco, de classe média, era um pouco o porta-voz do povo. Tem isso no Cinema Novo e em muito da literatura. Hoje em dia, pelas questões do lugar de fala, isso não é mais aceitável. Como essa cultura, que sou eu, que é da classe média branca, a dita elite, pode fugir do white people problems (“problemas dos brancos”, em tradução literal) (risos)? Gostaria de falar sobre essa encruzilhada.
Esse tema lembra a polêmica na qual o ator Luis Lobianco foi envolvido, em janeiro, ao ser criticado pela comunidade trans, que não se sentiu representada no espetáculo GISBERTA.
As pessoas deveriam escolher melhor seus inimigos. Quando Chico Buarque lançou CARAVANAS (disco de 2017), uma mulher escreveu na rede social que ele não a representava mais. Daí CARAVANAS, que é um dos discos mais extraordinários que Chico já compôs, se reduziu ao problema de representar ou não a mulher atual. Sinto o mesmo com o Lobianco. Ele não é um inimigo das questões identitárias. Estamos vivendo uma época de radicalização, na qual você às vezes nem sabe bem por que ofendeu alguém. Há muita irracionalidade no mundo em que estamos vivendo. E há a questão da representatividade da arte. Você é um artista justamente pelo prazer da alteridade, de se experimentar na pele do outro, e não para falar só de você. Uma das aventuras da arte é ser outro.
Você fez isso em A GLÓRIA E SEU CORTEJO DE HORRORES, cujo protagonista é um ator.
Em FIM (primeiro romance de Fernanda, de 2013) também: são todos homens. Isso veio naturalmente em mim pelo prazer de experimentar não ser eu. Há uma grande liberdade nisso. Por ser uma atriz conhecida e escrever em primeira pessoa nos jornais, na hora da literatura eu quis fugir da minha voz. Essa é a função da arte. Chico não poderia ter feito todas aquelas músicas sobre mulheres? Dionísio não poderia se vestir de mulher? Dionísio é o deus do teatro, veste-se de mulher e acaba com Tebas porque riram dele por isso.
Como os artistas estão procurando seu lugar em meio a esse debate?
De um lado, o artista sempre foi visto como o bastião da liberdade de expressão. Enquanto havia um inimigo em comum, que era a ditadura militar, o artista era um pouco a voz da liberdade do cidadão, mas hoje há ataques de todos os lados. Tanto dos conservadores, que acusam a arte de mamar nas tetas (do governo), de se valer de dinheiro público para existir, quanto dos movimentos identitários que veem na classe artística uma elite. Então, a arte está rebolando. Hoje em dia, é difícil encontrar um assunto para se expressar livremente e não ser atacado de todos os lados. A arte existe no cinza. Nem no preto, nem no branco. O lugar da arte é o da subjetividade. E estamos vivendo um período em que não existe mais metáfora. Tudo é real e engajado. Outro dia, eu disse no Programa do Faustão que vivia na Faixa de Gaza, no Rio. Aí alguém entrou no meu Facebook e postou: “Sua idiota, estúpida! Da próxima vez, leia sobre a história de Israel!”. Usei a Faixa de Gaza como metáfora de lugar violento. Isso não existe mais. Estamos vivendo o fim da metáfora. Agora, as palavras só existem na sua concretude, no seu significado primeiro, do dicionário. Mas a arte é pura metáfora, pura subjetividade, ela é representação. Está muito difícil. Esse lado cinza, subjetivo da arte, se tornou sinônimo de frouxidão e falta de caráter.
Neste ano, lembramos os 50 anos de 1968, momento da contracultura. Como você descreve aquela época?
Foi uma ´poca muito engajada, também. O Dias Gomes, que é um excelente autor, era considerado maior do que Nelson Rodrigues, porque Nelson era reacionário. Só que Nelson é muito maior do que Dias Gomes; é o maior dramaturgo que o Brasil já produziu: ele coloca a classe média do subúrbio do Rio dentro da tragédia grega. Nos anos 1960, tinha a contracultura, mas tinha essa patrulha ideológica – da esquerda e da direita. Quando comecei a me entender por gente, isso tinha acabado. Foi na época do Asdrúbal (o grupo teatral carioca Astrúbal Trouxe o Trombone), do retorno do Caetano (Veloso) e do (Gilberto) Gil do exílio, época em que o (Fernando) Gabeira voltou com a sunga e todo o discurso ecológico e de sexo. Então, vivi um período em que aquele engajamento tinha arrefecido. Vi agora esse engajamento retornar de uma maneira chocante para mim. Tive que me acostumar a isso.
Você acha que 2018 será lembrado como um ano de revoluções ou de recrudescimento do conservadorismo?
Acho que estamos vivendo um embate dessas duas coisas. Você lembra dos anos 1960 como tempo da Guerra Fria, de movimentos conservadores que mataram Martin Luther King e (John Fitzgerald) Kennedy e, ao mesmo tempo, lembra de maio de 1968. Um é resposta ao outro. De agora vamos lembrar principalmente o início do que as revoluções tecnológicas fizeram de nós. Isso é o que marca esse início do milênio. Aliás, escrevi A GLÓRIA… muito por isso, como uma reflexão sobre o que era a arte antes e o que é hoje.
O dilema do protagonista Mario Cardoso, que se vê entre o comodismo de um contrato com uma grande rede de TV e o risco de fazer arte no teatro, é um dilema do artista hoje?
Quando ele entra na TV, não é só por comodismo. Os comunistas que sobraram das torturas foram contratados pela Globo: Dias Gomes, todo o Teatro de Arena, Paulo José. Estavam fazendo dentro da Globo obras importantes na época. A GRANDE FAMÍLIA, O BEM-AMADO, GABRIELA de Jorge Amado. Obras importantes. Então, quando o Mario vai para a TV, é porque ali a TV tinha tudo o que ele queria. Ele faz O QUINZE, de Raquel de Queiroz. Depois é que se acomoda.
O romance também mostra as mudanças nas aspirações de Mario. O livro fala da perda das ilusões da juventude?
Não sei. Minha mãe tem essa frase, que está lá no livro: os primeiros 20 anos são fáceis, difícil é se reinventar aos 60. Quando Mario vai fazer Tchélkhov, ele fala: “É aqui”. É importante aos 20 anos você ter essa verdade revelada: “Eu sou um ator”. Depois, você tem que se reinventar, e vai ficando cada vez mais difícil. Junto com essa eterna necessidade de se reinventar que a profissão de artista requer, existe uma decadência no país. A cidade dele (o Rio) decai, os meios de produção de teatro e de cinema decaem. Tanto que ele acaba num presídio justamente vendo que Shakespeare faz sentido ali. Não faz sentido no shopping. Ele vê que o grande traficante é mais Macbeth do que qualquer outro. E tem a questão do crescimento evangélico. Tudo em que ele trabalha está sendo ameaçado pela entrada da internet, e o único lugar incólume é o canal evangélico. É uma reflexão sobre o país.
A crítica a uma suposta decadência da arte é antiga. Como você vê esse debate?
Sempre estamos em decadência de alguma maneira, mas, sempre que a gente afirma que está em decadência, te garanto que tem alguém achando o caminho do ouro. Abraçar o discurso da decadência é quase um desejo de que ninguém mais se encontre. É nessa hora que alguém do teu lado vai se encontrar e dizer para que serve a arte. Alguém vai reinventá-la enquanto você está ali no discurso pessimista, dizendo que a arte acabou, porque talvez tenha acabado dentro de você. Então, tenho muito cuidado. Você não sabe de onde ela pode vir. A arte é uma coisa que emerge.
Por outro lado, vemos nascer novas vozes na literatura e na cultura.
Sempre. Fukuyama (o cientista político Francis Fukuyama) disse que é o fim da história, só que ela não para. Talvez seja o fim de um ciclo. O humanismo está em baixa. Vivemos um tempo em que as questões do indivíduo foram explodidas. Hoje, o que rege tudo é a estatística. O século 20 foi humanista, e o terceiro milênio se desenha tecnológico, científico. A psicanálise perdeu para a neurologia. Por outro lado, acho que virá outra onda, na qual isso tudo voltará. No caso da psicanálise, você pode dizer que ela não é ciência, que Freud talvez seja mais escritor do que cientista. Ele é mais do que isso, e pode ser que não haja comprovação científica, como se exige hoje, de muito do que ele tenha pensado. Por outro lado, a reinvenção do que ele fez do confessionário, da necessidade de um ser humano falar com outro, não morre. Você pode entupir um sujeito de remédio, mas tem uma hora em que ele tem que falar com alguém.
Em que outros aspectos esse fenômeno se manifesta?
O mundo se americanizou. A globalização americanizou o mundo, tanto o que a gente come quanto o que consome. Todas as cidades viraram um Duty Free. O caráter especial de um lugar se perdeu. Todos os lugares são iguais. Todo mundo usa os mesmos remédios para as mesmas doenças. Todo mundo tem depressão. É uma espécie de massificação geral da cultura, da medicina, do consumo. Acho que haverá uma onda de horror a isso tudo, de se reconhecer que é preciso outro ser humano para curar a depressão de alguém, de que é necessário ir ao teatro ver alguém em cima do palco. Isso já está ocorrendo. Pense no Facebook, a cultura de ódio que veio desse lugar não regulado e absolutamente predatório, no sentido de usar seus dados. Acho que já está começando a acontecer um revés. Acho que haverá uma crítica à falta de humanidade que há no mundo hoje. Com a arte, por exemplo. Nos anos 1970, 80, os filmes mainstream eram de Coppola, Cassavetes. APOCALYPSE NOW era um filme mainstrem. Hoje é só THOR, HOMEM-ARANHA. Isso é geral. Só vai para grandes salas o blockbuster de quadrinhos. A cultura de massa agora não tem sutileza, sofisticação. É bruta. Tudo o que tem sofisticação é cult. Só funciona em nichos.
Há algum otimismo no seu discurso.
Não lido com otimismo, nem com pessimismo. São sempre as duas coisas juntas. Não há como ser otimista hoje em dia. Vivemos um período de fim de mundo, todos têm essa sensação de que o homem enlouqueceu. São ondas, acho que isso vai mudar. É como a questão do Facebook. Era um lugar não regulado, mas chegou a hora em que o próprio Zuckerberg (Mark Zuckerberger, CEO do Facebook) ficou assustado. Você vê na cara dele. Ele está assustado com aquilo para que pode servir o que ele inventou. Ele disse, na CNN, que acha que eve ter regulação. É uma surpresa, porque ele dizia que o Facebook praticamente não existia, que era só uma ferramenta de leva e traz (de notícias e posts), que não podia se posicionar como um jornal.
Como você analisa esse momento de ataques a artistas e à cultura no Brasil?
É como se a arte fosse um objeto de luxo, uma coisa dispensável. Outro dia eu estava falando com mamãe (a atriz Fernanda Montenegro), que está escrevendo a biografia dela. Li um capítulo em que ela fala de Getúlio Vargas. Ele implantou uma ditadura terrível. Mas chamou Gustavo Capanema (para ser ministro da Educação e Saúde). E quem cuidou da orientação musical foi Villa-Lobos. Chamou Drummond (que foi chefe de gabinete de Capanema). Sinto que havia um desejo de construção de país. O tratamento dispensável que hoje é dado à arte tem muio a ver com o não reconhecimento que nós mesmos estamos tendo do próprio país. Um país que odeia a sua cultura é um país que se odeia. Quando você nega a sua cultura e a trata como algo menor e dispensável, isso é um espelho do sentimento que você tem pelo país. É algo mundial, mas no Brasil está ganhando contornos mais terríveis. Quem tem acesso aos meios de cultura é uma elite, mas que também faz parte do Brasil. Villa-Lobos faz parte do Brasil. São poucos os Machados de Assis, é preciso que eles venham mais. Sobre a Lei Rouanet, é comum a discussão de que o Sudeste fica com toda a verba. Uma vez, o Jean Wyllys e eu debatemos o tema, e ele veio com esse discurso. Expliquei pessoalmente para ele que acho um desserviço esse racha dentro da classe. O Brasil tem talento de sobra para desenvolver uma indústria criativa. O problema é o mau uso da lei para fazer banquetes em ato político. Se vamos dar todo o recurso para quem não tem nada, quando esse cara começar a ter, ele para de ter direito (à Lei Rouanet)? Quando um ator para de ser ator que não tem nada para ser um ator famoso? Quem estabelece isso?
Você concorda com a tese de que a vilanização dos artistas tem como objetivo calar o potencial crítico da arte?
Em parte, sim. Há setores que sabem que essa classe tem poder de mobilização da opinião pública e que é interessante calá-la. Quando você consegue colar o discurso de que os artistas são “mamadores”, uma elite inútil, é claro que você cala essa voz.
Uma crônica sua sobre feminismo gerou polêmica em 2016. Como você observa a qualidade do debate nas redes sociais, essa nova arena pública?
Há debates e debates. As redes sociais são um avanço imenso, deram voz a milhões de pessoas que a gente nem sabia que tinham voz para falar. Por outro lado, acirraram os grupos que pensam da mesma maneira e concordam entre si e depois atacam os outros grupos. Acirraram essa radicalização do discurso. E o anonimato das redes muitas vezes faz aflorar o pior do ser humano. É o fato de ser anônimo falando, de não haver justamente o embate pessoal do afeto. Agora, muitas coisas importantes vieram à tona por causa dessas vozes que puderam existir. Outro aspecto é que é difícil, hoje, entender o que é manipulado e o que é real na rede. Muitas vezes, uma informação que começa manipulada ganha corpo. Uma notícia falsa que começa com um robô é acreditada por um ser humano.
Quais são os seus próximos projetos?
Estou gravando agora SOB PRESSÃO (minissérie da Rede Globo). Há outras coisas rolando, mas não falo primeiramente por superstição e, depois, porque não fui permitida a falar (risos).
Hoje, o Brasil está mais para comédia ou tragédia?
O Brasil é tragicômico. Sempre foi.
PARA LER:
Fim
Cinco amigos cariocas rememoram festas, casamentos, separações, manias, inibições, arrependimentos.
Sete Anos
Crônicas sobre cinema, teatro, política e cotidiano e um texto inédito sobre a morte de seu pai, o ator Fernando Torres.
A Glória e seu Cortejo de Horrores
Romance sobre as desventuras de Mario Cardoso, um ator de meia idade, do sucesso à derrocada.
Fonte: ZeroHora/Caderno doc/Fábio Prikladnicki (fabio.pri@zerohora.com.br) em 22/04/2018