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Entrevista com Henrique Medeiros Pires
Entrevista com Henrique Medeiros Pires

ENTREVISTA COM HENRIQUE MEDEIROS PIRES

 

Secretário especial da Cultura no Ministério do Desenvolvimento Social

 

A Lei Rouanet é o melhor instrumento de fomento que existe”.

 

O Ministério da Cultura foi criado seguindo o modelo francês da mesma pasta, criado na década de 1950. E lá na França, às vezes é ministério, às vezes é secretaria, o conjunto da obra não muda”.

 

Estamos em um país com mais de 12 milhões de desempregados. Cultura, considerando as leis de incentivo, é um dos mecanismos mais rápidos de reversão dessa situação.”

 

Gaúcho de Pedro Osório, o recém-empossado secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro começou sua carreira política em Pelotas, onde atuou como diretor do Museu da Baronesa, do Teatro Sete de Abril e do Instituto João Simões Lopes Neto. A partir de uma larga experiência na área cultural, o jornalista Henrique Medeiros Pires, 56 anos, integrou por três vezes o Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul. Em 2016, assumiu em Brasília o cargo de chefe de gabinete do Ministério do Desenvolvimento Social, então comandado pelo também gaúcho Osmar Terra, atual ministro da Cidadania, pasta à qual a Secretaria Especial de Cultura está vinculada. Graduado em Estudos Sociais pelo Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas (UFPeL), com especialização em formulação de políticas públicas pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Henrique Pires fala nesta entrevista a ZH sobre seus planos à frente da pasta. E rebate as críticas sobre a mudança de status do extinto Ministério da Cultura para uma secretaria especial. Para ele, “o conjunto da obra não muda nada”. A descentralização dos recursos da Lei Rouanet, muito mais ativa nas capitais do país, aparece como uma das tônicas da sua gestão. O secretário pretende usar sua experiência na administração de espaços culturais públicos em Pelotas para fortalecer a circulação de espetáculos e eventos no interior do Brasil. A regularização dos serviços de streaming de vídeo e música também está na mira de Henrique Pires. Assegura, no entanto, que, apesar das plataformas passarem a pagar tributos, os custos não devem ficar mais altos para o consumidor.

 

 

A Lei Rouanet é tema de calorosos debates, embora pouca gente compreenda sua importância e mecanismo. No fim do governo Temer, foi divulgado um estudo apontando que, a casa R$ 1 investido via Rouanet, R$ 1,59 retorna para a economia do país. Qual é a proposta da secretária para a Lei Rouanet?

Pessoas, entidades e grupos que ouvimos chegaram ao consenso de que a Lei Rouanet é o melhor instrumento de fomento que existe. Não vamos mexer na essência da lei, mas encontrar mecanismos que possam melhorar sua aplicação. Percebemos que, muitas vezes, houve certa dificuldade do ministério em ser ágil na análise de prestação de contas. Também há algumas questões relativas à centralização. Há muita reclamação de que a lei está mais presente no eixo Rio-São Paulo, mas também há queixas de que está muito centralizada nas capitais. A Lei Rouanet foi criada em 1991, a partir de uma análise sobre a Lei Sarney. Ela é baseada no financiamento mediante parte do Imposto de Renda devido por pessoas ou empresas, mas também prevê um fundo de cultura com recursos de loterias, que visa justamente a financiar produções descentralizadas. Essa última parte, do fundo, não funcionou muito bem, e só ficou um pé da Rouanet em atividade, por isso essas distorções aparecem. Próximo das instâncias de decisão, estão aqueles que pagam o imposto, e claramente é mais fácil conseguir um financiamento de uma grande empresa em Porto Alegre do que em Bagé, por exemplo.

 

 

A secretaria pretende fazer com que esse fundo funcione melhor?

Sim, mas precisamos dar algumas respostas imediatas. Sabemos que é possível que uma parte dos recursos das empresas estatais que são investidos em Lei Rouanet, de 10% a 20%, sejam destinados para financiar editais de circulação de espetáculos e formação de plateia, dentro da vocação da estatal. Historicamente, por exemplo, o BNDES apoia música erudita. Nossa intenção é ter uma reunião com a direção do BNDES para que um percentual do montante que pretende investir seja destinado a editais, feitos por eles e por nós, permitindo que um pianista, por exemplo, faça uma turnê pelo interior do Brasil. Não pretendemos dirigir absolutamente nada. Pretendemos apenas que casas de espetáculo, públicas ou privadas, possam receber espetáculos financiados pela Lei Rouanet, em um primeiro momento, por meio dos editais. Futuramente, quando um circuito já estiver criado, as pessoas nem precisarão mais de edital para garantir circulação.

 

 

Além do BNDES, com que outras empresas o senhor pretende se reunir para debater o tema?

A Petrobras é outro exemplo, e há uma série de empresas nas quais o governo federal tem participação. Vamos procurar todas. O ministro Osmar Terra já marcou uma reunião com o ministro Paulo Guedes para tratar desse assunto. A partir do sinal verde do Ministério da Economia, vamos procurar as direções. Isso é possível fazer agora porque o modelo atual não é o de presidencialismo de coalizão, onde se destina a Caixa Econômica para um partido, o Correio para outro… vamos tratar com uma ideia só, que é a do Ministério da Economia. Não há outra instância com que tratar. Nesse aspecto, nosso trabalho foi facilitado.

 

 

Outra crítica à Rouanet é a destinação de recursos para artistas já consagrados.

Quando as pessoas veem um artista famoso no palco, não dimensionam o custo que é colocar a estrutura em torno dele em funcionamento. Ele terá o melhor guitarrista, baterista, iluminador… Ou seja, gera empregos dentro de uma cadeia intensa, desde o caminhoneiro até quem serve a refeição. Existe uma cadeia da cultura que normalmente, pelos custos que envolvem uma grande produção, é mais ampla e mais cara para grandes espetáculos. O que estamos pensando, e essa é uma ideia que partiu do ministro Osmar Terra, é diminuir o teto do que é possível financiar, para que a base possa ter mais acesso a esses recursos. Estamos estudando, mas poderá haver uma diminuição entre 20% e 30% do teto, baixando de R$ 60 milhões para algo em torno de R$ 40 milhões. Esses R$ 20 milhões poderiam ser distribuídos para um número maior de projetos.

 

 

A mudança de status do Ministério da Cultura para uma secretaria foi motivo de apreensão pelo setor cultural, ante a possibilidade de redução de investimentos. Como o senhor pretende trabalhar para manter o setor cultural em operação?

O que houve foi a integração de três ministérios em uma pasta só, que é a Cidadania. Em um primeiro momento, isso permitirá que ingressos de um espetáculo financiado pela Lei Rouanet sejam destinados a quem integra os programas sociais do governo. Se temos no Rio um espetáculo com classificação indicativa que permita a entrada de jovens de 14 anos, vamos tentar fazer com que adolescentes dessa idade inseridos em algum programa social possam assistir ao espetáculo. De positivo nessa união há a integração entre esporte, cultura e lazer. Com relação ao ministério da Cultura passar a ser Secretaria Especial, não causou impacto algum. Em primeiro lugar, porque os orçamentos foram mantidos. Em segundo lugar, o Ministério da Cultura foi criado no Brasil, seguindo o modelo francês da mesma pasta, criado na década de 1950. Quem criou o ministério na França foi Charles de Gaulle, um militar da reserva eleito em voto direto. Não era um homem de esquerda. Acabou sendo modelo para a pasta no mundo inteiro. E lá na França às vezes é ministério, às vezes é secretaria, o conjunto da obra não muda. Aqui também. Tanto que continuamos com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) com o Instituto de Museus e as secretarias todas. Os secretários continuam recebendo a mesma remuneração, não houve rebaixamento de ninguém. É simplesmente uma readequação.

 

 

Como o senhor vê essa espécie de cruzada contra a cultura e a forma pejorativa com que setores da sociedade alinhados com o novo governo se referem ao intelectualismo?

Estamos em um país com mais de 12 milhões de desempregados. Cultura, considerando as leis de incentivo, é um dos mecanismos mais rápidos de reversão dessa situação. Na medida em que sejam promovidas mais atividades culturais, lançamentos de livros, shows, eventos, se consegue ocupar mais gente em uma cadeia produtiva, que tem rápido reflexo na sociedade. Estamos tentando pacificar esse cenário, herdado de uma eleição muito acirrada. A partir do apoio de pessoas famosas para um ou outro candidato, houve uma associação da arte com algo que a população não tem acesso. Isso não é verdade. A tendência é que, aos poucos, as pessoas juntem os palanques.

 

 

De certa forma, a campanha de Jair Bolsonaro contribuiu para que parte da população olhasse com receio para o setor cultural, não?

Eu consegui passar essa campanha eleitoral sem brigar com ninguém. Não tenho Facebook. O máximo que me permito é o WhatsApp. Em grupos de família, vi brigas, mas não me meti. Algumas discussões que agora estou acompanhando são muito rasas. As pessoas fazem polêmica em cima de coisas que já estão resolvidas. Um cenário de cultura, de intelectuais, em que as pessoas pensam e criam, sempre é efervescente. O que precisamos ter agora é um pouco de tranquilidade para trabalhar, o país inteiro, e os artistas principalmente, pois as pessoas precisam honrar seus compromissos, pagar suas contas, gerar emprego e fazer o que melhor sabem fazer: apresentar o resultado de seu trabalho cultural.

 

 

Como atingir essa tranquilidade?

O próprio presidente Bolsonaro deu uma declaração interessante, dizendo que precisávamos usar um pouco do espírito de Duque de Caxias. O Caxias foi o homem que, em Dom Pedrito, no episódio do Poncho Verde, foi conversar com os gaúchos para fazer a paz honrosa. Até hoje reverenciamos o Caxias, que, na verdade, ganhou a guerra. Se formos analisar a Revolução Farroupilha, o Império venceu. Quinze anos depois, veio a Guerra do Paraguai, e os paraguaios invadiram Uruguaiana. Aqueles gaúchos que foram pacificados pelo Caxias em Ponche Verde montaram a cavalo novamente, dessa vez para defender o Império, e expulsaram o inimigo de Uruguaiana. Esse é o espírito que precisamos ter.

 

 

Há uma preocupação em evitar tragédias como a do Museu Nacional do Rio? Como será o investimento em patrimônio histórico?

Paulo Amaral, que era diretor do MARGS (Museu de Arte do Rio Grande do Sul), foi escolhido pelo ministro Osmar Terra para ser o presidente do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus). Na primeira reunião que tivemos, o ministro pediu a ele que intensificasse os trabalhos de dotar os museus brasileiros das melhores condições para prevenção e combate a incêndio. Teremos que enfrentar isso com a maior rapidez, principalmente com relação à parte elétrica. Grande parte dessas instituições estão sediadas em prédios antigos, e muitas usam equipamentos modernos, o que gera sobrecarga na parte elétrica.

 

 

Há orçamento para isso?

Primeiro, teremos que ver as condições, depois projetar o que precisa ser feito. O Museu da Quinta da Boa Vista, que incendiou, era ligado à UFRJ e estava realizando um plano de prevenção contra incêndios, mas o incêndio chegou antes. Não era da estrutura do Ministério da Cultura. Acreditamos que mesmo museus ligados a outras instituições passem também por uma revisão em suas instalações. Fui responsável, por um período, pelo Museu da Baronesa, em Pelotas. Promovi na prefeitura a licitação para contratação de uma empresa que fizesse a prevenção de incêndio e um seguro. Depois que você faz isso, a própria seguradora notifica se a estrutura está com algum problema e sugere tomar certas medidas, porque não querem ter o gasto de repor um patrimônio alvo de sinistro. Tenho experiência nisso, sei que dá para fazer.

 

 

Como avalia o cenário cultural do Rio Grande do Sul? Prevê políticas específicas para o Estado?

O Rio Grande do Sul tinha até pouco tempo uma rede de teatros e conservatórios de música no Interior que permitia uma boa circulação de artistas sem lei de incentivo. Queremos reativar isso. Havia um conservatório muito bom em Bagé, há um conservatório em Pelotas, tem um bom teatro em jaguarão, um centro muito legal em Arroio Grande, em Camaquã. O problema é que não há espetáculos com regularidade circulando por essas cidades. Isso complica, pois são equipamentos caros que precisam ter vida, atividade. É preciso formar público. Também há feiras literárias em todo o Interior. De maneira geral, é um Estado que demanda bastante a Lei Rouanet e tem conseguido êxito no uso da lei.

 

 

Por que as plateias e a circulação diminuíram nesses espaços?

É cada vez mais difícil tirar uma pessoa de casa. Tem televisão, vídeo para assistir no celular. Há também o aspecto da segurança. Mas, se tu tens um espetáculo de qualidade, as pessoas o assistem. Quando tu levas a Ospa para uma viagem pelo Estado, ela enche o lugar que for. As pessoas adoram. Mas onde estão os conjuntos de câmara que faziam o circuito no Interior? Não tem aparecido tanto assim.

 

 

É possível fortalecer esse cenário até o ponto dele não ser mais dependente de leis de incentivo?

Tenho certeza que sim. Se tu fazes um edital permitindo a um grupo circular por cinco ou seis cidades, eles serão remunerados para fazer essa circulação. Vão formar não só plateia, mas também uma rede. O restaurante que der apoio, por exemplo, também vai apoiar o próximo artista. Na época em que eu administrei o Teatro Sete de Abril, fechamos um ano com média de um espetáculo a cada dois dias.

 

 

Há um circuito de feiras literárias no Interior que pode ser fortalecido.

A Feira do Livro de Porto Alegre sempre teve um patrocínio forte em função da Lei Rouanet. Eu conhecia alguns patrocinadores, então muitas vezes, bati na porta deles com projeto aprovado, pedindo R$ 50 mil para A Feira do Livro de Pelotas, mas não conseguia. Espero que, estando agora do lado de cá da mesa, consiga fazer editais que permitam que essas pequenas feiras, que fomentam a leitura e mantêm uma livraria aberta no Interior, possam ter financiamento. Não é apenas a feira. Tem lá um palco onde um músico se apresenta, há toda uma cadeia produtiva que é movimentada. Isso não pode ficar concentrado só nas capitais.

 

 

Como estão os planos em relação ao setor audiovisual, uma das cadeias que mais movimentam recursos na área cultural?

Tem um tema que está bem em pauta, que é o vídeo por demanda. Temos a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que incide sobre a veiculação, a produção e o licenciamento de obras cinematográficas e videográficas em todas as plataformas. A grande discussão é qual o futuro do audiovisual para os próximos 30 anos. Hoje, essa questão está bem equacionada com a Ancine, temos um Fundo do Audiovisual, que financia a produção brasileira, mas temos de aprofundar o debate sobre essas formas de ver o audiovisual, porque o mundo todo está discutindo isso. Para um filme participar do Festival de Cannes, tem que ter no mínimo oito meses de apresentação em cinemas. Já no Festival de Veneza, o filme que ganhou a última edição (ROMA) foi feito para uma plataforma digital. Os países estão discutindo isso para preservar a produção, as salas, os impostos arrecadados. Nosso desafio é tratar desse tema.

 

 

Regular serviços por demanda como Spotify e Netflix não pode encarecer o serviço para o usuário?

Não. O volume é muito grande, então não haverá uma transferência para o usuário. A questão é regular. Todo mundo que está produzindo dentro do mercado nacional está dentro de uma cadeia produtiva. Empresas colocam material videográfico e fonográfico à disposição, que o usuário paga com cartão de crédito internacional, e elas não contribuem com absolutamente nada no país. Fica desigual. Se você tem um bom produto, mas, por estar dentro do território, paga uma série de tributos, não pode estar no mesmo cenário que alguém que está sei lá onde, oferecendo um produto também bom mas sem pagar o que você paga. Essa discussão pode representar a sobrevivência de muitos produtores.

  

Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno/Alexandre Lucchese (alexandre.lucchese@zerohora.com.br) em 14/01/2019