UMA BRASILEIRA QUE FEZ HISTÓRIA
Diplomata Bertha Lutz tornou-se referência no feminismo ao participar da elaboração da Carta da ONU, em 1945.
Bertha foi responsável pela inclusão da palavra “mulheres” na redação da carta na assembleia de San Francisco.
No final da II Guerra, representantes de 50 países firmaram em São Francisco, nos Estados Unidos, um tratado para estabelecer a nova ordem mundial. Em 26 de junho de 1945, foi assinada a Carta das Nações Unidas, cuja redação traz a simbólica marca de uma brasileira, a diplomata e cientista paulista Bertha Lutz (1894-1976). Foi dela a proposta de se mencionar no texto “homens e Mulheres” na referência ao ser humano – até então, a expressão “homem” era recorrente neste sentido. A carta entraria em vigor no dia 24 de outubro daquele ano, quando foi oficialmente fundada a Organização das nações unidas (ONU).
Nome fundamental quando se conta a história do movimento feminista no Brasil – participou ativamente pelo direito das mulheres ao voto, instituído no país em 1932 –, Bertha é personagem de BERTHA LUTZ E A CARTA DA ONU, biografia no formato de história em quadrinhos assinada pela jornalista gaúcha Angélica Kalil e pela ilustradora baiana Mariamma Fonseca, conhecida como AmmA. As autoras planejam lançar a obra, ainda em produção, em março de 2019.
Angélica e AmmA apresentam Bertha narrando os momentos mais importantes da conferência histórica, em um arco narrativo que contempla flashbacks da trajetória da personagem, destacando por que e como ela foi escolhida para integrar a delegação brasileira enviada aos EUA pelo governo de Getúlio Vargas.
O estudo sobre o tema começou a cerca de três meses, quando Angélica pesquisava sobre mulheres importantes da história do Brasil para a produção dos vídeos que publica em seu canal no YouTube, Você é Feminista e não Sabe. O trabalho já rendeu o livro homônimo, primeira parceria entre Angélica e AmmA.
- Faz anos que pesquiso histórias de mulheres. Nenhum assunto me puxa mais. Acho que a gente tem de pegar de volta essas histórias para entendermos que somos muito mais do que somos ensinadas a acreditar – comenta Angélica.
O interesse por Bertha ganhou força quando Angélica e AmmA souberam da tese AS MULHERES E A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, desenvolvida por Elise Luhr Dietrichson (Noruega) e Fatima Sator (Argélia) na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Para o estudo, as pesquisadoras se basearam em uma série de correspondências escritas por Bertha 25 anos depois da assinatura da Carta das Nações unidas, nas quais relata bastidores do encontro e sua intenção com outras delegações. Ao todo, 160 pessoas foram enviadas por seus países para a elaboração do tratado. Apenas seis eram mulheres e somente quatro ficaram até o final das negociações: Bertha Lutz, Virginia Gildersleeve (EUA), Minerva Bernardino (República Dominicana) e Wu Yi-fang (China).as memórias, Bertha comenta que sua proposta para inclusão da distinção entre os gêneros foi alvo de pressão, inclusive entre outras mulheres. A delegada dos EUA, por exemplo, disse que o pedido da brasileira era uma atitude “muito vulgar”. Bertha descreveu: “Eu informei-a que, muito pelo contrário, a necessidade de lutar pelos direitos da mulher tinha sido a principal razão pela qual o governo do Brasil me tinha incluído na delegação”. Em contraponto, Bertha lembra que a comitiva indiana, composta somente por homens, a apoiou.
- Como ainda não se usava a palavra “gênero”, falava-se “sexo”. Antes se pensava que a palavra homem já incluía mulher, mas ela insistia que não, que era muito importante a distinção. Se hoje ainda é difícil a gente explicar isso, imagina em 1945 – observa Angélica.
PESQUISAS DE BERTHA SE PERDERAM NO INCÊNDIO DO MUSEU NACIONAL
O incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro, destruiu textos, documentos e pesquisas de Bertha Lutz, formada em Ciências Naturais pela Sorbonne, em Paris. Foram perdidos valiosos materiais trabalhados por ela no campo da biologia e também parte importante da história do sufrágio feminino no Brasil, militância na qual Bertha se engajou na década de 1920, inspirada na luta das sufragistas na Inglaterra. Em outubro, a Unesco incluiu a briga de Bertha pelo voto feminino no programa Memória do Mundo, tornando seus registros patrimônio cultural. Bertha trabalhou por mais de 40 anos no Museu Nacional e a ele destinou grande parte de seu acervo antes de morrer, em 1976, aos 82 anos.
- O que já está desenhado de narrativa vai contar como é a Bertha, com apoio de outras mulheres em San Francisco, conseguiu incluir a questão de gênero na carta da ONU. As personagens são incríveis, cada uma vem de um lugar, cada uma tem sua história – destaca Angélica.
Filha do cientista Adolfo Lutz e da enfermeira inglesa Amy Fowler, Bertha, após estudar na França, fundou, em 1919, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, que posteriormente se tornaria a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Em 1936, Bertha assumiu o mandato de deputada federal, devido à morte de Cândido Pessoa, do qual era suplente. Sua atuação parlamentar foi marcada por propostas de igualdade salarial, licença maternidade de três meses e redução da jornada de trabalho para as mulheres. Devido a sua militância feminista, Bertha ganhou de seus detratores o apelido de Lutzwaffe, em referência às aeronaves nazistas da Luftwaffe. É o equivalente ao “feminazi” de hoje – o que sugere que a luta de Bertha Lutz permanece atual.
Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno em 05/12/2018.