TENHA PACIÊNCIA
Nova HQ do americano Daniel Clowes, autor de GHOST WORLD e WILSON mistura gêneros em uma viagem no tempo rumo ao infinito primordial do amor eterno.
LIVRO: PACIÊNCIA, HQ de Daniel Clowes. Tradução de Jim Anotsu, editora Nemo, 180 páginas.
Um policial noir ultracolorido. Uma ficção científica hipster. Um drama existencial carregado de crítica social. Um romance desbragado assinado por um quadrinista célebre pelo cinismo e pelo pessimismo em relação à humanidade.
Difícil enquadrar PACIÊNCIA em um só gênero – e isso é uma das virtudes da HQ escrita e desenhada pelo americano Daniel Clowes.
A viagem no tempo que seu protagonista empreende nos leva a um jardim de sensações: excitação, pelo ritmo vertiginoso da trama; apreensão, quanto ao destino dos personagens; tristeza, diante da falta de perspectivas e um certo fatalismo das gentes costumeiramente retratadas por Clowes; felicidade, ao concluir a leitura de uma obra caprichada, corajosa e, a seu estranho modo, confortadora.
A HQ revista tipos e temas do autor de 56 anos, um dos ídolos do quadrinho independente americano, a ponto de ser cobiçado pelo cinema – já viraram filme GHOST WORLD, indicado ao Oscar de roteiro adaptado em 2002, e WILSON, que estreou neste ano nos EUA. Em PACIÊNCIA, que também ganhará versão cinematográfica, tornamos a ver um protagonista obcecado por um objeto de afeto ou de desejo, enfrentando ameaças e colocando-se em risco, ao mesmo tempo em que dá voz ao olhar enviesado de Clowes para a sociedade americana, um mundo onde o bizarro e o belo se fundem, como em um filme de David Lynch, um ambiente hostil e emburrecido – as armas a proteger seus personagens são o desprezo e o sarcasmo.
Paciência é, em mais de um sentido, o que falta ao protagonista, Jack Barlow. Atenção para o único spoiler, mas é a mínima informação necessária (copiei a frase do release): Jack é um homem obstinado em encontrar a pessoa que matou sua esposa, Paciência, quando ela estava grávida. Ele faz o diabo para embarcar (agora uso o subtítulo do livro) em “uma viagem cósmica através do espaço-tempo rumo ao infinito primordial do amor eterno”.
Dito assim, Jack soa como um herói romântico, só que ele é cheio de defeitos, como todos nós (a coloridíssima paleta da HQ nos lembra: as coisas na vida não são preto ou branco). Mentiroso, autocentrado – o uso de balões com falas cortadas ajuda a dimensionar a obsessão do personagem, surdo ao que os outros dizem –, agressivo, afobado, ele próprio se define como “um saco de bosta patético”. Sua idealizada Paciência é isso mesmo: idealizada. O périplo de Jack por um terreno pantanoso – o dos dilemas típicos a histórias de viagem no tempo (“o quanto eu posso interferir? Se eu fizer tal coisa, será que nós vamos nos conhecer?”) - é uma jornada de conhecimento e de autoconhecimento. Uma espécie de terapia, talvez uma exposição pública de anseios e angústias do próprio Clowes, trabalhados em silêncio ao longo de uma década – dizem que ele não mostrou uma única página a ninguém, nem mesmo a sua mulher, Erika.
Sabendo um pouco dos bastidores, fica evidente que este é um artista diferente daquele autor de gibis mais frios e desesperançosos, a exemplo de COMO UMA LUVA DE VELUDO MOLDADA EM FERRO (1993) e GHOST WORLD (1997). WILSON (2010) e PACIÊNCIA (2016) surgiram depois que Clowes precisou lidar com a vida e a morte: em 2005, tornou-se pai (do menino Charlie); no ano seguinte, passou por uma complicada cirurgia no coração. Seus mais recentes protagonistas conservam o olhar cínico, mas também são homens determinados a constituir ou reatar laços familiares: Wilson procura sua ex-mulher, de quem estava afastado havia 14 anos, e descobre que tem uma filha; Jack quer salvar a mulher para ver seu filho nascer. Os três – Wilson, Jack e Clowes – têm agora uma preocupação maior: viajam ao passado em nome do futuro, porque querem deixar uma herança ao mundo.
Fonte: ZeroHora/Caderno DOC/Ticiano Osório (ticiano.osorio@zerohora.com.br) em 13/08/2017.