GIBIS DE, COM E PARA PAIS
Em época de Feira do Livro de Porto Alegre, fica a dica: Três HQs sobre paternidade.
Quadrinhos não são coisa de criança: são de pai. Da autoajuda ao humor, da expectativa ao luto, há um punhado de obras sobre paternidade em uma vertente cada vez mais frequente nas prateleiras, a dos quadrinhos autobiográficos. Uma visita às seções de HQ das livrarias e dos sites vai mostrar, por exemplo (e ficando apenas no terreno do caderno Vida), obras sobre uma jovem francesa que descobre ter síndrome de Asperger (A DIFERENÇA INVISÍVEL), a trajetória de sete anos em uma concorrida faculdade de Medicina brasileira (ESTUDANTE DE MEDICINA), a construção da identidade sexual de uma americana homossexual a partir de sua relação com o pai (FUN HOME), o romance de um quadrinista suíço com uma soropositiva (PÍLULAS AZUIS) e as traumáticas memórias de uma inglesa que sofreu abuso sexual na infância e na adolescência (DESCONSTRUINDO UNA).
- Existe um desgaste da ficção – comenta o psicanalista Mário Corso, ele próprio um leitor de quadrinhos – A marca do “eu passei por isso”, do “eu estive lá”, define a prosa do nosso tempo. Como se a marca do vivido sublinhasse conteúdo.
- Prefiro usar o termo relato de si em quadrinhos para designar essas obras porque existe uma grande discussão sobre o que realmente é uma biografia, uma autobiografia ou uma autoficção. Todas elas operam em um limite entre o que é inventado e o que é real, mesmo as memórias são reinventadas e ressignificadas – analisa o roteirista e pesquisador de HQs Guilherme “Smee” Miorando.
Os três gibis destacados nestas páginas transitam por essas definições. NÃO ERA VOCÊ QUE EU ESPERAVA, do francês Fabien Toulmé, reconstitui sua relação com a segunda filha, que tem Down. O GUIA DO PAI SEM NOÇÃO é uma coleção de anedotas (mas com crítica e autocrítica) inspiradas na vida em família do canadense Guy Delisle. ROSALIE LIGHTNING: MEMÓRIAS GRÁFICAS é uma elegia do americano Tom Hart.
Para Miorando, esse tipo de obra potencializa a identificação com o leitor, pois a pessoa retratada é, ao mesmo tempo, autor, narrador e personagem. Transformado em personagem, protegido por uma representação gráfica, o quadrinista se permite ser mais aberto e franco sobre seus desvios e seus erros? Corso responde:
- Creio que ajuda, o desenho facilita a caricatura, a hipérbole. O drama é que para fazer romance gráfico você precisa de dois talentos, um como desenhista, que é óbvio, e outro como escritor. O equilíbrio é que faz o acerto. Como muitos não sabem contar ou inventar boas histórias, vem a calhar falar de si mesmo. E falar mal de si mesmo é um passaporte para a “autenticidade”.
Sucesso não falta aos três autores. Toulmé vendeu 30 mil exemplares na França e foi traduzido para Alemanha, Brasil e China, entre outros. Delisle já lançou quatro volumes do GUIA DO PAI SEM NOÇÃO. E ROSALIE LGHTNING foi best-seller do jornal The New York Times e entrou na lista das melhores graphic novels do Washington Post.
NÃO ERA VOCÊ QUE EU ESPERAVA
O título não poderia ser mais direto e honesto: NÃO ERA VOCÊ QUE EU ESPERAVA é uma HQ sobre a idealização que os pais fazem de seus filhos – e sua consequente frustração. Já começamos a paternidade de um jeito torto, vamos dizer a verdade. Falamos “meu filho vai ser isso”, “meu filho vai fazer aquilo”. Mas não somos seus donos nem controlamos seus destinos.
O autor do gibi, o francês Fabien Toulmé, já não era marinheiro de primeira viagem quando ele e a mulher, a brasileira Patrícia, ficaram grávidos de Julia, e ele morava em João Pessoa, na Paraíba. Louise, a filha mais velha, tinha quase quatro anos. Mas Toulmé não estava preparado para o que vinha pela frente. Ou melhor: ele sempre esteve preparado, só que negativamente.
No dia em que vão fazer o primeiro ultrassom, Toulmé está estressado por conta da translucência nucal, que permite avaliar o risco de malformação e detectar a existência de algumas doenças no bebê. “É estranho… Existe potencialmente um número incrível de malformações, de doenças. Ela podia ter um braço a menos, leucemia, sei lá mais o quê. Mas o que realmente me preocupava era a trissomia 21. Não sei bem por quê, talvez por ser a primeira deficiência (sic) em que a gente pensa, a mais marcante, mais conhecida”.
Os exames realizados descartam a possibilidade de Down, mas quando Julia nasce, já de volta a Paris, “uma fisionomia particular” atordoa Toulmé. O sopro cardíaco e a tetralogia de Fallot (um conjunto de quatro anomalias no coração) o assustam menos do que o diagnóstico que, enfim, soa como uma sentença condenatória para ele: sua filha tem trissomia 21. O pai se vê assaltado por uma avalanche de sentimentos: “Minha intolerância para com os deficientes, o olhar dos outros, meu desejo de não ter tido aquela criança (…). Fiquei imaginando aqueles casais de velhos que passeiam na cidade de braços dados com seu filho, um adulto com síndrome de Down, de língua e barriga pra fora, aqueles velhos tristes e desiludidos. Não era essa a vida que eu tinha imaginado para a minha família, para mim… Queria uma vida de viagens, de aventuras, de países tropicais. E ali estava eu, em plena periferia parisiense, com um céu cinza, pessoas cinza e uma filha trissômica que ia acabar com a minha vida. Minha cruz”.
A franqueza brutal do narrador é um dos trunfos de NÃO ERA VOCÊ QUE EU ESPERAVA, em um interessante contraste com o traço leve e humorístico adotado por Toulmé, que não teve pudores de mostrar ao mundo sua odisseia íntima para “aceitar” Julia.
Ao contar sua história desta maneira, o quadrinista opera um processo simultâneo e contraditório junto ao leitor: por um lado, nos identificamos com ele, suas angústias, seus medos; por outro, sua mesquinharia – vocês não fazem ideia de quanto tempo ele demorou para pegar a filha no colo! - meio que exime nossos eventuais pecados. É como se Toulmé estivesse voluntariamente se oferecendo para a malhação de Judas.
Dividida em 19 capítulos monocromáticos (ora com cores quentes, ora com frias), a jornada de aprendizagem e transformação do autor é pontuada pelos desafios impostos a crianças com Down e seus pais, pelo enfrentamento de preconceitos corriqueiros – das gozações de mau gosto ao sentimento de pena –, por lições e insights válidos a todas as famílias. NÃO ERA VOCÊ QUE EU ESPERAVA nasce de um desencontro – entre as expectativas de Toulmé e a realidade – e culmina em um reencontro: o do amor paterno.
Livro: Não Era Você que eu Esperava – Autor: Fabien Toulmé – Editora Nemo.
O GUIA DO PAI SEM NOÇÃO
Um dos personagens mais adoráveis de Calvin & Haroldo era o Pai, com seu senso de humor algo blasé, sua postura quase conivente com a criatividade amalucada do filho, sua reinvenção de fatos históricos, científicos ou comportamentais. É possível que os leitores lembrem dele ao ler O GUIA DO PAI SEM NOÇÃO, do franco-canadense Guy Delisle (e aqui vai o único senão ao livro editado pela Zarabatana: não há a mínima informação sobre o autor, nenhum texto nas orelhas nem na contracapa).
Trata-se de uma coleção de anedotas saudavelmente politicamente incorretas – não há, ou não deveria haver, má interpretação, afinal, o título já diz que seu protagonista é um pai sem noção. Funciona como uma espécie de manual do que não fazer ou dizer, embora também sirva como espelho de algumas situações que nós, pais, passamos com filhos pequenos. Ou seja: é divertido para caramba, mas, mas na melhor tradição do humor, traz junto uns puxões de orelha.
O pai esquece, mais de uma vez, de colocar uma moeda sob o travesseiro do filho que está trocando a dentição. O pai prega uma pegadinha terrível ao forjar que teve a mão decepada por uma motosserra. O pai critica implacavelmente o desenho da filha (“Você vai me dizer que é um estilo, que foi de propósito. Bem, minha garotinha, tem uma baita diferença entre desenhar como um idiota e ter estilo!”). O pai come escondido uma caixa de cereal para não ter de dividir co os filhos.
Eu e minha filha mais velha, a Helena, demos risadas gostosas! Ela não sabe, ou pelo menos eu torço por isso, mas algumas piadas deixaram aquele saboroso travinho amargo. Por exemplo: nossos filhos não necessariamente vão gostar das mesmas coisas de que gostamos. Outro exemplo: não podemos exigir deles o que por vezes não exigimos nem de nós mesmos.
Em meio às piadas, Delisle também faz um desabafo. É assim que eu entendo a história O MACACO, em que o pai não consegue guardar para si a mistura de fascínio e pavor que a realidade é capaz de provocar, aqueles relatos tristes, mórbidos e desumanos envolvendo crianças que mexem profundamente com a gente que já tem filhos.
Por trás das piadas, há aquilo que é essencial na paternidade: o entendimento sobre seu papel. Por mais sem noção que seja, o pai sabe que ele é um norte para os filhos. Uma bússola moral, um guardião, um plantador de boas lembranças, um oráculo, a luz que dissipa as trevas. Nosso olhar, um aceno e um sorriso podem ser tudo de que as crianças precisam para enfrentar seus pequenos grandes desafios (vide a ternura com hora marcada de A PISCINA). E a recíproca é verdadeira: os olhares, um aceno e um sorriso da Helena e da Aurora, a nossa caçula, tornam a vida adulta muito, muito mais leve.
Livro: O Guia do Pai sem Noção – Autor: Guy Delisle – Editora Zarabatana Books
ROSALIE LIGHTNING
Ter um filho muda tudo. Não falo só de rotina ou de dinheiro; muda a perspectiva. Enxergamos a vida de outra maneira. Enxergamos nossos pais com outro olhar. Enxergamos o futuro com um misto de entusiasmo e apreensão. Enxergamos a nós mesmos como realmente somos – um filho realça o que temos de virtude e de desvio.
Filhos são nossos espelhos, mas também nosso além. Carregam nosso DNA e nosso sobrenome. São eles que perpetuarão nossa alma depois que o corpo descansar. O que fazemos em vida é deixar marcas: um afago quando eles acordam, uma sessão de cócegas, um passeio de mãos dadas pelas ruas da cidade, um filme de terror na Netflix acompanhado por pipocas e gritos exagerados, um beijo de boa noite por cima do pijama novo de unicórnio. Mas somos desconfiados, somos inseguros: queremos deixar marcas físicas também, queremos a certeza material de que não seremos esquecidos. Daí que falamos em herança – no fundo, a coleção de HQs que faço é norteada pela paternidade: são as minhas filhas as que mais aproveitarão minha bagagem cultural.
Porque esta é a ordem natural das coisas: os filhos enterram os pais.
É por isso que a morte de um filho é uma tragédia devastadora.
Não estamos preparados (embora seja nosso maior temor desde a gestação).
Não sabemos onde depositar todo o amor que cultivamos.
Não enxergamos mais – nem sentido na vida, nem um futuro, nem a nós mesmos.
Isso tudo eu escrevo sem experiência própria, nem próxima, baseado apenas no jornalismo e na ficção. A única certeza é essa: não estamos preparados, mesmo quando o filho já está doentinho há muito tempo, mesmo quando os médicos poupam palavras – a fé, a esperança e o amor mantêm os pais protegidos por um lado (eles tem um motivo para levantar da cama: “Hoje meu filho vai melhorar”) e desguarnecidos por outro (quase chega a notícia ruim, é como se fosse inesperada).
Agora, imagine quando a notícia ruim vem mesmo de forma inesperada.
E quando você está recém descobrindo o que é ser pai.
Foi o que aconteceu com o cartunista americano Tom Hart e sua mulher, a artista gráfica Leela Corman. Rosalie, sua filhinha que adorava catar bolotas, ver tartarugas e sonhava em conhecer o labirinto do milho, morreu de repente, com menos de dois anos.
“O que você faz quando sua filha morre?”, pergunta Hart. “Você cai num buraco.”
Tom Hart caiu, profundamente. Mas reergueu-se e fez uma história em quadrinhos, ROSALIE LIGHTNING: MEMÓRIAS GRÁFICAS.
Trata-se de uma obra dolorida e melancólica, como era de se esperar, mas cheia de amor e de criatividade. Com extrema sinceridade (o que garante momentos tocantes), mas com algum distanciamento crítico (o que freia o sentimentalismo), Hart reproduz o seu estado de espírito após a partida prematura: quebrado. “Mas não sou eu quem precisa de conserto”, ele diz, em um insight arrepiante. “É o corpo da minha filha que precisa ser consertado.”
Tudo o fazia lembrar de Rosalie, pensar em Rosalie, imaginar Rosalie. Filmes, gibis, livros, desenhos animados: tudo trazia alguma chave, se não para entender, pelo menos para suportar. Hart redesenha, reinterpreta ou reinventa cenas de Akira Kurosawa, Hayao Miyazaki, Gustav Verbeek, do gibi TALES FROM THE CRYPT e de um livro infantil chamado LOUIS. Mistura passado e presente, sonho e memória, enquanto desenvolve uma narrativa mais ou menos linear sobre o destino do casal a partir da morte de Rosalie, suas tentativas de lidar com o trauma, seus percalços financeiros, seus enfrentamentos com a solidão e o demônio da culpa retroativa (“Será que Rosalie deu algum tipo de aviso?”). Compartilha reflexões sobre a vida e a morte, a infância e a paternidade, o luto e a arte. Os desenhos por vezes são um borrão, como a ilustrar a confusão e o desânimo total; em outras, os traços ficam mais nítidos e delicados, representando a alegria e a esperança (foi em um desses momentos que chorei, chorei, chorei).
E Rosalie está sempre presente.
Do nada, no meio de uma sequência, pode aparecer um quadrinho com ela ou uma declaração de amor de Hart a sua tartaruguinha. Ou então Rosalie pode aparecer num sonho gostoso ou em um pesadelo assustador. Ou pode estar escondida na cena de um filme ou por trás do rosto de outra menininha.
Porque um filho é para sempre.
Livro: Rosalie Lightning – Memórias Gráficas – Autor: Tom Hart – Editora Nemo.
Fonte: Zero Hora/caderno Vida/Ticiano Osório (ticiano.osorio@zerohora.com.br) em 04/11/2018