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Iluminações: Coletânea de contos de Alan Moore
Iluminações: Coletânea de contos de Alan Moore

UM OUTRO ALAN MOORE

Mago dos quadrinhos mostra sua veia insólita (e ácida) em livro de contos

Livro:  ILUMINAÇÕES – de Alan Moore, Editora Aleph, 552 páginas

 

O escritor e roteirista britânico Alan Moore se consagrou como um dos principais nomes da história dos quadrinhos com obras seminais como WATCHMEN, V DE VINGANÇA, A LIGA EXTRAORDINÁRIA, BATMAN: A PIADA MORTAL e MONSTRO DO PÂNTANO.  Porém, desde muito cedo em sua carreira externou contrariedade em relação ao mecanismo predatório da indústria de HQs, abominou as adaptações cinematográficas de seus trabalhos e foi paulatinamente se voltando contra o mainstream cultural.

 

O autor, que já havia publicado os romances VOICE OF THE FIRE (1996) e JERUSALÉM (2016) e o poema épico THE MIRROR OF LOVE (2003), encontrou na literatura um refúgio para sua veia experimental sufocada pela lógica do mercado.  Sua primeira coletânea de contos, ILUMINAÇÕES, acaba de ser publicada no Brasil e é uma excelente porta de entrada para a sua prosa.

 

O volume traz histórias inéditas e outras já publicadas em revistas e antologias. A abrangência cronológica mostra uma larga amplitude temática e estilística por parte de Moore escritor, o que não surpreende quem acompanha seu trabalho como quadrinista.

 

Nas nove narrativas reunidas no livro, ele manipula com destreza e lucidez o campo semântico das palavras empregadas para potencializar as sensações provocadas pelas metáforas que proliferam por suas páginas, sempre perpassadas pela fantasia e, por vezes, pelo horror cósmico.  Com essas mescla, não esconde as influências da verborragia de H. P. Lovecraft, William Blake e Thomas Pynchon, da geração beat e da new wave da ficção científica.

 

O conto que abre o volume, LAGARTO HIPOTÉTICO, mostra como a opressão pode se fantasiar de amor em um relacionamento abusivo. Na trama, que se passa em uma espécie de prostíbulo mágico, dois personagens andróginos se envolvem e se mesclam, como se fosse uma releitura DO CLÁSSICO persona (1966), DE Ingmar Bergman.

 

NEM MESMO LENDA imagina um ser humano que vive em ordem cronológica reversa, da morte para o nascimento, lidando com um grupo de excluídos sociais que se reúnem para investigar a existência do sobrenatural.  Em LEITURA A FRIO, o autor demonstra sua influência de Edgar Allan Poe com uma história fantasmagórica afiada envolvendo um médium charlatão como os que se aproveitam de pessoas enlutadas e vulneráveis.  Já em O ESTRADO ALTAMENTE ENERGÉTICO DE UMA COMPLEXIDADE IMPROVÁVEL, imagina a ascensão e queda de uma sociedade nos instantes que antecederam o big-bang.

 

Por mais de uma vez, as personagens sobrenaturais de Moore sugerem que a percepção humana não passa de uma aproximação do mundo real, um mecanismo de defesa que evoluiu para priorizar a sobrevivência em detrimento da precisão.  Desse modo, os contos nos levam à conclusão de que sua escolha por retratar o mundo pelos olhos da magia é tão precisa e verossímil quanto qualquer outra.  Não por acaso, o autor recebeu o apelido de "mago dos quadrinhos" ou "bruxo de Northampton".  Para ele, a arte é uma forma de magia e o artista é o que há de mais próximo de um xamã na sociedade contemporânea.  Talvez venha dessa noção sua revolta contra a indústria cultural.

 

Embora tenha sido fundamental para o amadurecimento do gênero de super-heróis nos anos 1980, Moore dedica-se, quando aborda esse tema na literatura, a construir alho que fica entre a negação e a sátira desse fenômeno de massa.  Nesse sentido, a novela que ocupa metade do volume, O QUE SE PODE SABER A RESPEITO DO HOMEM-TROVÃO, faz de ILUMINAÇÕES uma antítese de sua carreira, um anti-Alan Moore.  Diferentemente do que ocorre na física, em que matéria e antimatéria se aniquilam, ele enriquece ainda mais o seu legado a partir da própria negação.

 

O QUE SE PODE SABER SOBRE O HOMEM-TROVÃO, um conto com as dimensões de um romance (quase 300 páginas), é dividido em capítulos curtos, sob ordem cronológica não linear, com alternância de pontos de vista e gêneros textuais.  A trama estabelece um panorama de quase um século da indústria de quadrinhos, desde seu início obscuro ligado à máfia, que controlava as empresas de distribuição que transportavam gibis (e bebidas) durante a Lei Seca, até a pandemia, que trouxe dificuldades financeiras e logísticas para as editoras de HQs.

 

A narrativa mescla situações reais e inventadas, sempre usando nomes fictícios, mas facilmente reconhecíveis para os iniciados no mundo dos quadrinhos.  Ali estão retratados heróis (Homem-Trovão/Super-Homem, Rei Abelha/Batman, Sr. Oceano/Aquaman), pessoas (Sam Blatz/Stan Lee, Joe Gold/Jack Kirby) e empresas (American/DC, Massive/Marvel) reais.  Cada trecho usa um registro textual diferente, como gravações de sessões de terapia, entrevistas, interrogatórios, fóruns de internet e instruções de um roteirista para um quadrinista, demonstrando virtuose formal.

 

A narrativa mostra como essa indústria vem enfrentando dificuldades criativas pelo fato de, nas últimas décadas, ser tocada por fãs transformados em profissionais, e não por artistas originais.  A novela mostra que os artistas vinham de estratos sociais mais baixos e eram explorados e silenciados pelas corporações, sem receber pagamento decente.  Com a ascensão das convenções de quadrinhos, fãs de classe média sem talento alçaram cargos nas editoras e estancaram a criatividade no gênero.

 

Em dado momento, dois personagens, Dan Wheems e Milton Finefinger, decidem deixar a indústria antes que ela os enlouqueça.  O subtexto do conto sugere com ênfase que as HQs de super-heróis, com seus enredos maniqueístas que suscitam conforto em um mundo cheio de nuances, são responsáveis, entre outras coisas, pela infantilização do público e pela ascensão de uma extrema direita que busca soluções fáceis em líderes durões – algo natural para Moore em um país como os EUA, "onde, desde o tempo dos pioneiros, ninguém confia em ninguém". Um dos personagens chega a inferir que o senso moral dos heróis seria a idealização da ética que os estadunidenses não possuem e que projetam em seus personagens.  Moore chega a comparar o culto a seres onipotentes como o Homem-Trovão/Super-Homem a "um tipo de religião comercial".

 

A crise também se dá, na visão de Moore, pela incapacidade de renovar o público leitor após uma tentativa desesperada de provar que HQs não são para crianças, perdendo o interesse das novas gerações, enquanto os mais velhos minguam sua fidelidade mantida por um vício na figura onipotente dos heróis, buscando recriar a cada lançamento o "frisson perdido e irrecuperável da própria infância".

 

Fonte:  Zero Hora/Caderno DOC/André Cáceres/Estadão Conteúdo em 05/03/2023