BLACK HAMMER + WATCHMEN
O que une um dos lançamentos mais aclamados no Brasil em 2018 ao clássico da década de 1980.
Vencedor do prêmio Eisner – o Oscar dos quadrinhos americanos – de melhor série nova em 2017, BLACK HAMMER foi um dos lançamentos mais aclamados por público e crítica brasileiros em 2018. O roteirista Jeff Lemire, o desenhista Dean Ormston e o colorista Dave Stewart contam a história dos super-heróis Abraham Slam, o marciano Barbalien, a Menina de Ouro, a Madame Libélula, o Coronel Weird e a robô Talky-Walky, que estão exilados há 10 anos em uma cidadezinha rural, onde precisam fingir ser pessoas normais e comuns. Nesse cenário, cada um tem suas rotinas, suas angústias, suas ambições.
Todos aludem a velhos conhecidos dos leitores do gênero, mas com problematização de suas características: por exemplo, a Menina de Ouro, que é inspirada no Capitão Marvel, está presa em sua forma mágica infantil, mas por dentro é uma mulher envelhecida e rabugenta. O marciano adotou o nome terrestre Mark Markz (citação a J’onn J’onzz, o Caçador de Marte) e, na forma humana, enfrenta um outro tipo de preconceito em relação ao diferente. Lemire dá voz e espaço para o desenvolvimento dos personagens enquanto vai tecendo sua peça maior: os mistérios que cercam esse confinamento.
A editora Intrínseca já publicou dois volumes, ORIGENS SECRETAS e O EVENTO. A cada capítulo, uma comparação que nasceu como declaração hiperbólica foi ganhando corpo: BLACK HAMMER é o WATCHMEN dos nossos tempos. Não digo que a série de Lemire, Ormston e Stewart vá revolucionar e ditar rumos para os quadrinhos como aconteceu com o clássico de Alan Moore (roteiro), Dave Gibbons (arte) e John Higgins (cores). Mas proponho uma aproximação estética entre essas duas obras distantes mais de 30 anos no tempo.
Para começar, leiam estas palavras: “Cada protagonista representa uma versão distorcida de um arquétipo de super-herói em particular, reunidos em um grupo de personagens cínicos, disfuncionais e eticamente dúbios, motivados pelo verdadeiro comportamento humano em vez da responsabilidade inata para com a sociedade. Apesar de suas sérias falhas, todos os personagens a certa altura cativam a simpatia dos leitores. O autor ilumina suas motivações uma a uma: os capítulos alternam entre a condução da trama e o exame da personalidade e da história de cada personagem. (…) O leitor é encorajado a saltar para frente e para trás pela narrativa e apreciar as conexões escondidas que jazem em seu interior. (…) Engenhosos recursos foram utilizados para ajudar nas transições de cena, usando diálogos e trocadinhos visuais para ligar uma cena à seguinte”.
Cabem como descrição de BLACK HAMMER, mas são trechos sobre WATCHMEN pinçados da biografia ALAN MOORE: O MAGO DAS HISTÓRIAS, escrita por Gary Spencer Millidge.
ARQUÉTIPOS E SIMETRIAS
Ambos os gibis são peças da mais fina tapeçaria, cujos fios vão sendo cruzados, unindo passado e presente, até chegarmos ao grande quadro.
Ambos inserem super-heróis em um mundo real – a diferença é que WATCHMEN o fez em escala global e BLACK HAMMER, na vida comezinha.
Em ambos, os super-heróis vivem apartados desse mundo real: alguns estão aposentados ou agem na clandestinidade em WATCHMEN; em BLACK HAMMER, eles precisam esconder sua condição.
Ambos transformam arquétipos em personagens que são, a um só tempo, muito familiares mas bastante singulares: temos, por exemplo, o herói urbano decadente (Coruja em WATCHMEN e Abraham Slam em BLACK HAMMER), o tipo antissocial, quase marginal (Rorschach r garota de Ouro), o ser de poderes sobrenaturais (o Dr. Manhattan e Libélula), o visionário brilhante e ególatra (Ozymandias e Coronel Weird).
Em ambos, a morte de um dos heróis (o Comediante em Watchmen, o personagem-título em BLACK HAMMER) é episódio catalisador da narrativa e do relacionamento entre os demais personagens.
Em ambos, um dos mocinhos (Ozymandias em WATCHMEN, Coronel Weird em BLACK HAMMER) toma uma atitude vilanesca por acreditar que está pensando em um bem maior.
Não há só simetrias, mas também inversões e extrapolações: em WATCHMEN, o Dr. Manhattan é um homem que vai cada vez mais se afastando da humanidade, tornando-se praticamente um alienígena; em BLAK HAMMER, o extraterrestre Barbalien busca a aceitação em seu novo planeta.
Em WATCHMEN, o contexto é o da Guerra Fria, portanto, cada passo dos aventureiros fantasiados tem impacto na geopolítica e na sociedade imaginadas por Alan Moore; em BLACK HAMMER, a guerra é ao frio: nossos heróis combatem a solidão. Não deixa de ser um ato político de Jeff Lemire: na era da selfie, da supremacia do narcisismo, nossos heróis estão empenhados em encontrar algum tipo de amor não no espelho, mas nos braços de outro ser humano.
Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno/Ticiano Osório (ticiano.osorio@zerohora.com.br) em 02/01/2019