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Eu Matei Adolf Hitler: do Norueguês Jason
Eu Matei Adolf Hitler: do Norueguês Jason

O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA

 

Chega ao Brasil a HQ EU MATEI ADOLF HITLER, do norueguês Jason

 

Livro: EU MATEI ADOLFO HITLER, de Jason. Tradução de Dandara Palankof. Editora Mino, 48 páginas.

 

EU MATEI ADOLF HITLER é um título sensacionalista para uma obra de tom intimista. Não chega a ser mentirosa: estamos diante de um protagonista que recebe a incumbência de viajar em uma máquina do tempo para assassinar o genocida nazista antes que ele dê início à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto do povo judeu. Mas a HQ que está sendo publicada no Brasil pela editora Mino é muito mais uma história sobre relacionamentos contemporâneos e seus impasses do que um thriller de ficção científica embebido em perfume de escândalo. Se você só puder comprar 10 gibis em 2019, que este seja um deles.

 

Trata-se do segundo livro de Jason lançado no Brasil. O primeiro, SSHHHH! (2017), também da Mino, apresentou ao público do país a fauna e a gramática de John Arne Saeteroy, nome verdadeiro do quadrinista norueguês que completa 54 anos no próximo dia 16 e que, depois de morar na Dinamarca, na Bélgica e nos Estados Unidos, desde 2007 vive em Montpellier, na França. Sem usar uma palavra sequer e apostando na simplicidade do desenho, Jason encena em SSHHHH! Uma tragicomédia arrebatadora. O personagem principal, um corvo antropomorfizado, vive uma odisseia silenciosa ao tentar aplacar sua solidão. Poesia, humor, delírio, terror e surrealismo se combinam ao longo de 10 capítulos (que também funcionam isoladamente) em que transparecem o poder de síntese do artista e seu olhar ora doce, ora melancólico sobre a vida.

 

Jason retrata, em seus bichos vestidos, o mais nobre e o mais torpe do comportamento humano. Estão lá a esperança, a inveja, o amor, a agressividade, a paternidade, o desprezo… Honrado a tradição escandinava de apontar o dedo para a sociedade, sem piedade alguma, SSHHHH! Mostra, em um dos episódios mais geniais, o processo de anulamento do indivíduo – que só volta a ser visível no momento em que comete um crime (diga-se de passagem, situação comum aqui no Brasil).

 

Em EU MATEI ADOLF HITLER, Jason acrescenta palavras à sua radiografia dos sentimentos, tão ambiciosa quanto econômica: novamente, o autor trafega por diferentes gêneros, misturando crítica social com drama psicológico, ao mesmo tempo em que investe no minimalismo – o livro é curtinho, cada página obedece a uma divisão em oito quadros (com duas únicas e significativas exceções), e os desenhos e diálogos são milimetricamente escolhidos. Não há detalhismo (a máquina do tempo, por exemplo, consiste apenas em uma estrutura esférica dotada de uma cadeira e um botão) nem distrações.

 

A INAPTIDÃO À FRUSTRAÇÃO

 

Na trama, matador de aluguel virou uma profissão corriqueira, um dentista que extrai os problemas com os quais não conseguimos lidar: o vizinho que põe a música no volume máximo de noite, o chefe que prometeu um aumento e que acabou promovendo o colega, a esposa que não nos ama mais, os irmãos, os filhos. Jason parece ter antecipado em uma década – o gibi é de 2006 – um mal bastante atual e potencializado pela urgência de felicidade provocada por redes sociais como Facebook e Instagram: nossa inaptidão à frustração e nossa cultura do imediatismo, temperadas com uma certa frieza que o distanciamento virtual proporciona. É um paradoxo muito bem observado pelo autor: valorizamos o que sentimos, mas nem tanto o que os outros sentem. Só temos empatia por nós mesmos.

 

O protagonista da história é um desses assassinos, em crise com a namorada. Quando é contratado para ir à Alemanha de 1938 e matar Hitler, algo dá errado – algo dá duas vezes errado, algo dá muito errado. A vida é assim, né? – Jason parece nos dizer –, cheia de imprevistos. Ao retornar, o matador está 50 anos mais velho e sua namorada, ainda jovem, está envolvida com outro rapaz. Pode-se encarar como uma metáfora: como envelhecemos quando nos afastamos da arduidade do amor.

 

Outra tragicomédia repleta de nuances e ressonâncias, de desencanto e de ternura, EU MATEI ADOLF HITLER usa a aparente segurança do absurdo para refletir verdades incômodas. A certa altura, uma personagem diz:

- Hitler sumiu em 1938. A Segunda Guerra nunca aconteceu. O mundo não deveria ser um lugar melhor?

 

A pergunta fica sem resposta. Porque é, no fundo, endereçada ao leitor. Os monstros não habitam fora de nós. Um indivíduo nunca carrega sozinho a culpa pelas dores do mundo. Será que o curso natural do homem é o da violência? Quanto do nosso precioso tempo gastamos com a raiva? Temos as habilidades da tolerância, do diálogo e, quem sabe, do perdão?

  

Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno/Ticiano Osório (ticiano.osorio@zerohora.com.br) em 09/05/2019