“A REVOLUÇÃO DOS BICHOS” ATUALIZA ORWELL
Artista gaúcho Odyr adapta para a história em quadrinhos obra do autor inglês, uma alegoria sobre o totalitarismo.
Livro: A REVOLUÇÃO DOS BICHOS, de George Orwell, adaptação e ilustração de Odyr. Tradução de Heitor Aquino Ferreira. Quadrinhos na Cia., 176 páginas.
Um dos slogans mais famosos de Donald Trump foi adaptado e virou meme na internet: “Make Orwell Fiction Again” (“Façam Orwell ser ficção novamente”) atualiza o legado do escritor inglês George Orwell (1903-1950) contraposições autoritárias. A mensagem contra o totalitarismo é o que está por trás de A REVOLUÇÃO DOS BICHOS, clássico romance de 1945, que ganha agora versão em quadrinhos no Brasil pelo artista gaúcho Odyr, com o texto de Orwell traduzido por Heitor Aquino Ferreira. Para quem ainda não entendeu, agora está desenhado.
O livro foi negociado pela Companhia das letras com a agência do espólio do escritor, geralmente refratário a esse tipo de projeto. A editora apresentou rascunhos de Odyr, um projeto editorial e conseguiu os direitos. Também acertou de negociar com outros países. A Penguin Random House vai publicar o livro na Inglaterra e na Espanha, a Houghton Mifflin Harcourt leva o trabalho para os EUA e a Mondadori na Itália.
- Não posso revelar as somas, mas foram valores altos – diz o publisher da Companhia das letras, Otávio Marques da Costa.
- Ter uma edição americana significa que vai haver um investimento grande, escolar e de divulgação, tem muito potencial.
A editora também fechou o contrato para a produção de uma adaptação de 1984 – o quadrinista ainda não foi definido.
Resumo rápido de A REVOLUÇÃO DOS BICHOS: os animais da Granja do Solar, cansados da exploração e da vida miserável imposta pelos humanos donos da fazenda, rebelam-se e criam um novo sistema de governo, mais igualitário. Entre um corvo que conta mentiras (espalha notícias falsas) e um período de prosperidade, os porcos – os animais mais inteligentes, líderes da revolução – começam a criar e usufruir de um sistema de privilégios que pouco a pouco leva a vida de volta ao que era antes.
O que chama atenção no livro é que o caráter à clef da narrativa – uma alegoria da história da Revolução Russa na primeira metade do século 20 – não se perde com o passar do tempo e chega fresco a 2018.
- Tentei me concentrar no essencial e atemporal – diz Odyr sobre a adaptação. – E o essencial do livro é tremendamente atual: a prática da desinformação, o uso do medo e paranoia instrumentalizado, a supressão de direitos, a repressão contra os protestos. Está tudo lá. A tristeza da submissão ao autoritarismo, o desejo de poder… São coisas que estamos vendo todo dia nas notícias.
A tinta acrílica usada nas composições dos quadrinhos é outro fator impressionante do livro. Material raro quando o assunto é quadrinhos, a acrílica empresta ao trabalho uma feição de obra de arte visual – ela também não foi uma escolha exatamente consciente para o autor. Insatisfeito com a “natureza absolutista” do nanquim, Odyr procurou uma alternativa na acrílica por acaso e esse se tornou seu material padrão nos últimos cinco anos.
- Sempre tive muitas dúvidas sobre quadrinhos pintados, sobre a fluência da linguagem com o uso da pintura, mas estou feliz com o resultado. Mantendo o livro muito aberto, com poucos fundos, pouca divisão em quadros, acho que a narrativa flui, não se interrompe na apreciação de imagens isoladas. E, no final, acho que a pintura beneficia o meu projeto para o livro ser como um livro infantil para adultos – afirma.
APÓS VIVER EM ALGUMAS CAPITAIS, ARTISTA VOLTOU PARA PELOTAS.
Entre as influências que o artista cita na pintura, estão nomes como Paul Cézanne, Henri Matisse, Edward Hopper, Richard Diebenkorn e, nos quadrinhos, Lorenzo Mattotti e Jacques de Loustal.
Dia desses, no Twitter, Odyr comentou uma entrevista de Lourenço Mutarelli na Folha de S. Paulo em que o paulistano dizia que estava “absolutamente falido”. O gaúcho acredita que o artista em geral “simplesmente se acostuma a viver no caos, viver de milagre, porque não consegue imaginar outra vida”.
- Depois de ter morado em algumas capitais, voltei para Pelotas para ter a vida mais simples e barata possível, para poder me dedicar ao máximo ao meu trabalho – explica agora. – Acompanho os amigos que moram no Rio e em São Paulo e sei que a maior parte deles não pode, por exemplo, pintar todos os dias, como pinto, porque têm de fazer freelas constantemente para se manter. Então, nesse sentido, ser pobre é um luxo, me dá o direito de fazer o que quero. Mas tem um desgaste ao longo dos anos, viver assim perigosamente, sem saber como pagar o próximo aluguel, contas acumulando, sempre no risco. A essa altura do campeonato, não tenho mais fantasias de nenhum sucesso extraordinário – meu desejo honesto para esse livro é que me traga de volta para a classe média.
Em agosto, a Netflix anunciou a compra dos direitos do livro de Orwell para um filme a ser dirigido por Andy Serkis, conhecido por seu trabalho em O SENHOR DOS ANÉIS e O PLANETA DOS MACACOS.
O histórico de adaptações de A REVOLUÇÃO DOS BICHOS para outros meios têm passagens curiosas. Chico Buarque escreveu Fazenda Modelo, de 1974, inspirado no livro. Antes, em 1954, a CIA estava por trás de u desenho animado inspirado na história – que foi barrado na França, por exemplo, por ser considerado “muito anticomunista”. A participação da agência americana no filme só ficou conhecida do público 50 anos depois. Em 1959, o governo britânico embarcou numa ideia parecida ao produzir uma tira de jornal inspirada no livro e distribuí-la como propaganda anticomunista para diversos países – entre eles, México, Índia, Venezuela, Tailândia e, sim, Brasil.
Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno/Guilherme Sobota/Estadão em 16/10/2018.