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Minha Coisa Favorita é Monstro: de Emil Ferris
Minha Coisa Favorita é Monstro: de Emil Ferris

MONSTRUOSO TRIUNFO

 

QUADRINHOS (Bic e Hidrocor)

 

Com MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO, a estreante Emil Ferris ganhou três prêmios Eisner, nos Estados Unidos, e os dois maiores festivais da Europa – Lucca e Angoulême

 

O LIVRO: MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO – de Emil Ferris – Tradução de Érico Assis, Companhia das letras, 416 páginas.

 

Desembarcou no Brasil uma obra que conseguiu a rara proeza de ser aclamada em um lado e no outro do Oceano Atlântico. Nos Estados Unidos, seu país de origem, MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO figurou nas listas dos melhores quadrinhos de 2017 elaboradas por publicações como o jornal The New York Times e o site Comic Book Resouuces (CBR). Em 2018, foi preiada em três categorias do Eisner, o Oscar dos gibis americanos: álbum, roteirista/desenhista e colorista. Também foi efusivamente saudado por grandes autores, como Art Spiegelman, de MAUS, Chris Ware, de JIMMY CORRIGAN, e Alison Bechdel, de FUN HOME. Na Europa, o livro ganhou no ano passado o troféu Gran Guinigi de melhor graphic novel, concedido pelo Festival de Lucca, na Itália, o maior do continente, e em janeiro, recebeu o Fauve d’Or, o principal prêmio do tradicional Festival de Angoulême, na França.

 

A façanha torna-se mais vultuosa quando conhecemos alguns números ligados à biografia de sua autora. Emil Ferris, 57 anos, levou cinco anos para concluir as 416 páginas desta que é sua primeira história em quadrinhos. Demorava dois dias para terminar uma única página, trabalhando 12 horas diárias – produzir MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO funcionou como reabilitação depois de a artista ter contraído a febre do Nilo Ocidental, doença que paralisou, temporariamente, suas pernas e a mão direita. Ela precisou aprender a desenhar com a esquerda e gastou cerca de 20 mil canetas esferográficas ou hidrocor no livro, que mimetiza um caderno escolar. Tamanho esforço custou a ser recompensado: a HQ foi recusada por 48 editoras até que a Fantagraphics topasse a empreitada.

- Acho que o livro era um monstro muito difícil, uma espécie de Frankenstein, grande e um tanto indefinível. Sendo assim, amedrontava as pessoas – admite Emil em entrevista por e-mail.

 

De fato, o escopo e a magnitude de MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO em sei Livro Um (serão dois volumes) são tão grandes, que não cabem em uma simples definição. A obra é protagonizada e narrada por Karen Reyes, uma guria de 10 anos inspirada na infância da própria Emil Ferris, que decide investigar o assassinato de uma vizinha tão bela quanto misteriosa, Anka, uma judia sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Através do caderno de desenhos de Karen, a autora mistura o drama psicológico de uma menina que começa a lidar com sua sexualidade; a efervescência política e social dos EUA do final dos anos 1960; a cultura pop dos gibis e filmes de terror; um passeio pela história da arte; as memórias do Holocausto e retratos dos monstros da vida real – sejam eles nazistas, racistas, exploradores de mulheres, fanáticos religiosos ou preconceituosos em geral.

  

ENTREVISTA COM EMIL FERRIS

 

SER MULHER É UMA DAS ENCARNAÇÕES MAIS PERIGOSAS”

 

 

O que há de fascinante em monstros e o que dizem sobre nós?

Somos fascinados porque nós somos monstros. Nosso medo “deles” indica que tememos encarar a nós mesmos. Tenho profunda simpatia em relação aos amedrontados, porque eu não sou menos assustada e menos imperfeita.

 

 

Existem monstros bons e ruins, como a protagonista, Karen Reyes, diz?

Se todos somos monstros, então o problema real é não estar ciente disso e deixar de possuir a humildade que esse discernimento dá. Monstros ruins são os mais verdadeira e profundamente amedrontados. Não têm o apreço e a humildade de abraçar sua “alteridade”. Devemos aceitar e encarar as imperfeições para que enxerguemos a beleza e originalidade em nós mesmos. A maior batalha entre a luz e as trevas é dentro de si.

 

 

Em um vídeo no YouTube, você diz que nada do que aparece no livro aconteceu, mas é tudo verdade (ou vice-versa). Qual é o grau de autobiografia?

Muitas coisas no livro são baseadas na minha vida e na minha experiência, embora os nomes e os relacionamentos tenham sido mudados para proteger inocentes e culpados. Eu era uma criança com antepassados de etnias diferentes na parte alta de Chicago que ADORAVA monstros, me apaixonava pelas minhas amigas e tinha tutores que eram muitos supersticiosos (em um caso) e adoravam arte e museus (em outros casos). Assim como Karen, vi a violência da época refletida no gênero de terror. Já cedo, minha exposição aos sobreviventes do Holocausto, da escravização e do genocídio dos afro-americanos por 400 anos, das desapropriações e do genocídio de povos ameríndios alargou minha consciência de toda a beleza que os monstros ruis destroem quando sua ganância vã não enfrenta oposição.

 

 

Como surgiu a ideia de usar canetas esferográficas e reproduzir um caderno?

Este livro foi baseado nos meus próprios cadernos. Quado eu era pequena, minha família era bastante pobre, portanto, tudo o que eu tinha eram canetas Bic e meu caderno escolar.

 

 

Karen se retrata e se vê como monstro. É um espelho de sua inadequação? Criada em uma família católica, ela se sente culpada pela própria sexualidade?

Sim, Karen sente-se culpada. Ela ouve o mantra da religião da mãe, de seus professores, de seus vizinhos, inclusive as palavras de sua querida e amada mãe, que quem ela é, uma pessoa que potencialmente pode amar gente do seu próprio gênero, não é “certa”, não é digna de aceitação e amor. Ela não vê, onde quer que olhe, representações de mulheres poderosas e magníficas que amam uma a outra. Até mesmo o seu irmão caracteriza de modo negativo qualquer uma que se identifique como lésbica, então Karen se vê em uma espécie de inferno. Desse modo, ela está aflita e desamparada. Escrevi este livro para o tipo de criança que eu fui. Escrevi para todos aqueles que são solitários e que não se sentem aceitos como são.

 

 

Seu livro é como um caldeirão em que se misturam drama psicológico, investigação de assassinato, contexto político e social, memórias do Holocausto, cultura pop e História da Arte. Ao cozinhar, você preocupou-se em harmonizar os ingredientes ou foi jogando tudo conforme a imaginação?

Essa é uma bela metáfora. A receita que você mencionou requer que eu periodicamente prove o ensopado. Se eu gosto, sirvo à mesa. No processo de cozimento, me apego a certos ingredientes, às coisas que me aturdem, aos mistérios e às visões que acho deliciosos.

 

 

Karen, ao desenhar e analisar capas dos gibis de horror, observa estereótipos do gênero: “Ter peitos é muito perigoso”. Para você, ser mulher é perigoso?

Ser mulher é uma das encarnações mais perigosas pelas quais a alma humana pode se aventurar. Quando não foi oferecida essa missão – a nós que nos identificamos com o sexo feminino –, acho que demonstramos uma tremenda coragem em adotar a roupagem de um corpo de mulher. Todo aspecto da história, cultura, política e dinâmica de poder social, bem como questões de gênero envolvendo coisas como o parto, corroboram isso pelo mundo todo.

 

 

Na mesma linha, há a cena tocante entre as personagens Anka e Bonequinha, que resume assim a história da medusa: “Ela deixava os homens com medo porque eles ficavam duros de olhar para ela. Aí mandaram o Perseu matar. Ele podia ter afogado, botado fogo nela, mas resolveu separar a cabeça do corpo, tirar dela o poder”. Homens se assustam com mulheres inteligentes? Preferem lidar apenas com um corpo?

Bem dito. Sim, acho que isso pode ser uma tendência que percorreu toda a nossa história, mas me alegro com esta geração que vem surgindo porque encontrei tantos homens que atuam com sua masculinidade em pleno poder. Eles se entendem completos, não precisam que qualquer pessoa seja diminuída e, além disso, montes de homens mais jovens defendem bravamente os direitos dos vulneráveis e menos privilegiados. Encontro com frequência homens que rejeitam ideias da Era Industrial que são redutivas e materialistas em prol de explorar sua natureza xamânica e obter experiência, perspectiva, autoconhecimento e sabedoria.

 

 

Ao ganhar o Eisner e os Festivais na Europa, quis esfregar na cara das 48 editoras que disseram não?

Não, eu não sou desse tipo. Cometi enganos demais na minha vida para usar os erros dos outros para me gabar. O que eu desejo é que as pessoas no meio editorial reorientem-se de modo a se aventurar mais. Talvez confiar um pouco mais em seus instintos. Pensar desse jeito permitem que surjam e cresçam coisas novas, coisas que podem ser um pouco diferetes e mais interessantes.

 

 

Você já se definiu como um Frankenstein e se disse feliz por ser toda remendada, em alusão às diferentes etnias de sua família. Como você vê o mundo de hoje, em que a tragédia dos refugiados e o drama da imigração ilegal suscitaram o terror da xenofobia?

Não acredito que, para a maioria das pessoas, sair de seu país de origem representa uma decisão banal e feliz. A maioria dessas pessoas é traumatizada. Estou muito triste quanto ao que foi feito com pais e crianças que recém fugiram de desastres em seus próprios países e vieram aos Estados Unidos. Crianças foram separadas de seus pais. De acordo com a mídia noticiosa dos EUA, crianças chegaram a ser perdidas. Não consigo entender o que “perdidas” signifique. Da última vez que ouvi, nenhuma explicação foi dada. É uma ferida descomunal na alma do país em que moro. Não se trata os outros assim.

  

Fonte: Zero Hora/caderno DOC/Ticiano Osório (ticiano.osorio@zerohora.com.br) com colaboração de Vicente Nogueira em 28/04/2019