ENTREVISTA: Rosália Meires Oliveira da Silva
Sua Biografia:
Rosália Meires Oliveira da Silva
Nasceu em São Francisco do Conde, cidade do Recôncavo baiano.
Na infância, devia estar com uns oito anos, quando foi agraciada, no final do ano letivo, com os dois primeiros livros da sua vida! Foi um episódio tão marcante que nunca esqueceu o nome nem a fisionomia da professora Lourdes, que a presenteara.
Na adolescência, seu pai, apesar do pouco estudo, presenteou-lhe no seu primeiro dia de aula no ginásio, com um Dicionário Inglês-Português, Português-Inglês. Emoção inesquecível. Guarda-o até hoje, com muito carinho.
Motivada pelo amor aos livros optou por cursar Biblioteconomia na Universidade Federal da Bahia-UFBA, e, foi na Secretaria da Receita Federal-BA, na Universidade Católica do Salvador – UCSAL e no Curso de Pós-graduação em Patologia/UFBA-FIOCRUZ, que teve a oportunidade de demonstrar o amor pela profissão escolhida, e de se sentir grata e realizada.
Quem é e como é a baiana Rosália?
Rosália é uma baiana baixinha, tímida, simples, mãe, avó que ama sua família. Tem poucos amigos, porém valiosos. A acham engraçada, mas ela não entende o porquê. Ama verdadeiramente os livros e as crianças. Apesar das turbulências que passa o planeta, consegue experimentar momentos de paz interior. Não é alegre nem triste nem tão pouco poeta. Segue a vida, trabalhando, cantando e alimentando a esperança de que tudo passará e que dias melhores hão de vir.
Fale sobre a sua trajetória na profissão.
A partir do 3° semestre de faculdade, comecei a trabalhar na Secretaria da Receita Federal, através de um programa denominado bolsa de trabalho, que na verdade era um estágio remunerado. Permaneci nesse programa até a conclusão do curso. Para que eu permanecesse na instituição, após a formatura, submeti-me a uma seleção para contratação pelo SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados). Fui aprovada, mas, pouco depois recebi um convite para trabalhar na biblioteca da Universidade Católica do Salvador - UCSal. Como na Secretaria da Receita Federal, a carga horária era de 8 horas e na UCSal, 6 horas com um salário equivalente, não pensei duas vezes. Aceitei. O problema foi ter pedido demissão antes de confirmada minha admissão na UCSal. Mais de 30 dias tentando ser entrevistada por alguém do RH. Como a entrevista era adiada dia após dia, pensei: E se não der certo? Nem SERPRO nem UCSal. Comecei a tomar consciência da minha precipitação, mas já era tarde.
Finalmente, após tantos dias de espera, aconteceu a entrevista. Lembro-me perfeitamente das primeiras perguntas: Há quanto tempo a senhora aguarda para ser entrevistada? E a senhora esteve aqui todos os dias? Dia abençoado! Deixei a carteira de trabalho com a secretária, devendo retornar num prazo de três dias, quando assinaria o contrato e apresentaria a documentação exigida. Compareci no prazo determinado. Como já tinha toda documentação, a contratação foi realizada sem pendências. A grande surpresa foi ao abrir a carteira para conferir as anotações, constatar que haviam considerado os dias que aguardei para ser entrevistada, como dias trabalhados. Carteira de trabalho assinada com data retroativa. Permaneci na UCSal de junho 1975 a abril de 1980. Dupla jornada: Das 07 às 13h na UCSal. E das 13:30 às 17:30 bolsista na UFBA.
Em maio de 1980 fui admitida na UFBA, através de um concurso interno, que regularizaria a situação de bolsistas que desempenhavam funções equivalentes às dos servidores. Lotada na Faculdade de Medicina, era responsável pela biblioteca do Curso de Pós-graduação em Patologia Humana. Em 1983 em virtude de um convênio, o curso de Pós-graduação em Patologia passou a funcionar no Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz/FIOCRUZ (CPqGM./FIOCRUZ)
Em 1994, a convite do Coordenador do curso, com aval do diretor deixei a biblioteca para atuar como secretária da Coordenação de Ensino, onde permaneci até me aposentar em 2005, e, por mais dois anos com um cargo de Direção e Assessoramento Superior (DAS). Apesar das vantagens não conseguia mais adiar a tentativa da realização do meu grande sonho. Depois de muita conversa consegui convencer o diretor a aceitar meu pedido de exoneração do cargo. A partir daí passei a dedicar o meu tempo às crianças.
Para você, os livros, e o conhecimento adquirido através deles, pode mudar o mundo?
Sabemos que não é nem será tarefa fácil. Mas se cada pessoa detentora de conhecimento, procurar disseminá-lo através de ações que tornem os livros, acessíveis a mais pessoas e que elas sejam estimuladas a também partilhar esse conhecimento, com certeza haverá uma mudança significativa de ações e atitudes advindas dessas pessoas. Sementes de árvores que dão bons frutos devem ser semeadas, independente do tipo de solo. Sabemos que muitas irão se perder, mas as poucas que vingaram, com certeza, farão a diferença. O mundo será mudado a partir da mudança de cada pessoa.
E a utopia foi desafiada por você e tudo se tornou realizável, possível?
Não diria que foi um desafio. Diria que acredito em sonhos realizáveis. Um sonho que envolve crianças, livros e amor, pode demorar de ser realizado, a jornada poderá ser árdua, mas a determinação, a certeza e a crença nas possibilidades são os combustíveis que impulsionam e tornam a caminhada suave a despeito dos percalços.
A citação de Eduardo Galeano, que está no livro, é um incentivo? “Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
Além de um incentivo, nos leva a refletir sobre nossos medos e fraquezas. Damário da Cruz escreveu um poema que eu amo, e, que, para mim é uma belíssima forma de dizer: Siga em frente. “Todo risco“ “... Ninguém decide sobre os passos que evitamos...” “... Tristeza de que não vamos por medo dos caminhos”. Tenho meus medos e coragem também.
Por que Projeto Arco-Íris?
Não tinha a intenção de mudar o nome do “Sopa de Letrinhas”. Mas depois que assisti o filme “A guerra do arco-íris”, que trata de uma disputa entre três reinos: O amarelo, o azul e o vermelho e o resultado dessa guerra é um arco-íris, pensei: Arco-íris! Tudo a ver com crianças, livros, mar e Jauá. Foi assim que o “Sopa de Letrinhas“ transformou-se em “Arco-íris – Jauá” .
Já são mais de 10 anos de existência, e podemos afirmar que deu certo! Durante esse período, aconteceram decepções? Crianças e jovens que pretendiam participar e desistiram, ou que foram convidados e nunca apareceram?
Aconteceram muitas decepções. Nós somos muito claros quanto ao permanecer no projeto: Nem por obrigação, nem contra vontade. Não há provas nem notas, nem condenação ou salvação. Existe o querer e o entendimento da importância da leitura e da literatura para o futuro de cada um. Qualquer criança ou jovem pode ingressar ou desistir a qualquer momento. A única coisa que pedimos é que avise quando estiver desistindo. Então, quando acontece simplesmente o abandono, eu sinto muito. Fico, por um tempo, magoada porque todos foram importantes, todos contribuíram para a existência do Arco-Íris e, principalmente, todos passam a ocupar um lugarzinho em nossos corações. Não costumamos fazer convites. Ficam sabendo da existência do projeto, se interessam e nos procuram. Alguns se informam sobre horário, mensalidade ... mas nunca apareceram. Acho que gratuidade às vezes assusta.
Conte-nos sobre os jovens que hoje, estão cursando uma universidade, e o que representa para você a passagem deles pelo Projeto?
Apenas três jovens preenchiam os pré-requisitos para ingressarem na universidade (idade x escolaridade). Uma foi aceita para o curso de pedagogia, mas infelizmente não teve condição de efetivar a matrícula. Lysara foi aceita para o curso de Engenharia Ambiental, no 1° semestre de 2017, mas não se matriculou porque não era o curso que desejava. No 2° semestre a primeira colocada na relação de convocados para o curso de Mecatrônica, na Faculdade de Tecnologia e Ciências-FTC, Salvador, com bolsa integral. Sempre foi muito responsável e presidiu a Academia Infantojuvenil de Letras Rubem Alves até 2019, quando encerrou sua participação no projeto, mas no dia 1° de fevereiro de 2020, nos prestigiou com sua presença para receber o exemplar do “Sábado é dia de Arco-íris”. Exemplo para os demais. Ela se declara grata ao projeto e nós sentimos muito orgulho por ter participado do Arco-íris, desde o nosso terceiro encontro em 18/04/2009.
Atualmente, Raine está finalizando as etapas para ingressar no curso de Pedagogia, utilizando a nota do ENEM.
O preço dos livros no Brasil está muito alto? Se custassem menos, acha que assim, muito mais pessoas estariam lendo?
Assim como os livros, os alimentos, as bebidas, o lazer (futebol, shows, viagens...) estão com preços altos, mas a maioria das pessoas comem, bebem, vão às arenas, praias...Por que não agregar o livro a essas necessidades “básicas"? Troca-se os supermercados por feiras, as marcas das bebidas vão variando de acordo com os preços, nas arenas os ingressos são para as arquibancadas porque são mais baratos... E os livros não poderiam dispor de um lugarzinho nesse universo de opções? Existem as bibliotecas públicas, as escolares; os sebos com preços excelentes; os amigos que leem; os livros “esquecidos” nas praças, nos transportes coletivos...; e os downloads gratuitos.
A questão não é o preço. É o querer, é o reconhecer a importância do livro e da leitura para a formação de cidadãos capazes de exercer, verdadeiramente, sua cidadania. Criticando, defendendo pontos de vista, praticando ações que beneficiem sua comunidade... Temos exemplos de catadores de lixo, vendedores ambulantes, pessoas consideradas sem condições reais para adquirir livros, mas que chegaram a se formar, ou mudar o seu estilo de vida utilizando os livros das bibliotecas públicas e resgatados em lixões. Essas pessoas precisaram de dinheiro ou de querer fazer a diferença?
A tecnologia, no caso o uso dos celulares por crianças e jovens, pode prejudicar o desenvolvimento, ou pode ser um aliado? O que é preciso fazer para corrigir o mau uso?
Ajuda e prejudica. As crianças e jovens precisam estar conectados, atualizados para acompanhar a linguagem tecnológica que está evoluindo numa velocidade assustadora. Os jovens já estão utilizando os celulares para digitarem trabalhos escolares, fazendo pesquisas diversas, aproveitando todas as facilidades e eficiência, como meio de comunicação... Os benefícios são evidentes! Porém muitos adultos presenteiam crianças e jovens com celulares, mas não os orientam nem dão limites quanto ao seu uso. O problema, na realidade, é agravado por pais que acalentam crianças pequeninas com celulares e seus joguinhos, para ficarem em paz nos momentos em que estão, também com seus celulares conectados através de aplicativos como o WhatsApp conversando com amigos, executando tarefas profissionais ou de negócios. A tendência é que essas crianças se tornem dependentes desses aparelhos porque os joguinhos são altamente viciantes.
É uma situação difícil porque os pais já perderam o controle sobre o uso dos celulares, tablets e computadores, principalmente em se tratando de jovens. Muitos, durante a madrugada, conectam-se a sites de relacionamentos o que tem causado diversos assassinatos. Nas escolas, professores são agredidos e filmados se fizerem alguma observação aos alunos por causa de celulares. Os pais poderiam minimizar essa situação. Mais qual o exemplo que alguns dão? Para minimizar o mau uso desses aparelhos por crianças e jovens, as famílias deveriam limitarem os horários para uso, orientarem com relação a determinados sites e puni-los (confisco do aparelho por x dias) quando deixarem de cumprir as determinações.
Como surgiu a ideia da Academia de Letras e como a iniciativa foi aceita pelos membros do Projeto?
Imagine várias crianças comendo todos os sábados, feijão com arroz. Chegará o dia em que, apesar da fome, rejeitarão o feijão com arroz de sempre. Não é diferente em se tratando de incentivo à leitura. As atividades desenvolvidas no projeto, apesar da variedade, tornaram-se repetitivas. Sentia a necessidade de agregar algo que não fosse cansativo nem monótono. Estudando, buscando surge, como “milagre“ a palavra academia. De imediato senti um alívio e tive a certeza de que seria a solução. Ah! E as crianças? Sabe aquele feijão com arroz? Agora estaria acompanhado de tomates bem vermelhinhos, folhas de alface... As crianças acolheram a ideia com muito entusiasmo. Na verdade, não sabiam de que se tratava, mas sabiam que era algo a mais. Era uma coisa diferente! E foi com muitos sorrisos que demos início às etapas necessárias para que a Academia de Letras do Projeto Arco-íris – Jauá, se tornasse uma realidade há pouco mais de cinco anos e já rendeu alguns frutos.
Fale sobre Jauá, essa belíssima praia baiana, onde a natureza forma lagoas e ainda permanece quase intocada, mesmo fazendo parte de Camaçari, região metropolitana de Salvador.
Jauá! Gostava mais desse lugar como era há uns três anos. A praia é linda, a lagoa é bela, as dunas davam a impressão de montanhas de gelo com uma vegetação rasteira e alguma pequenas e esparsas árvores, que compunham o cenário que nos deixava maravilhados com a sua beleza e singularidade. Era a paisagem que avistávamos da varanda da nossa casa.
Atualmente, a praia continua linda, a lagoa ficará mais bonita com a revitalização da praça. E as dunas? As dunas estão minguando. Elas estão cedendo lugar para as construções de casas de todos os tipos e tamanhos. Da varanda da nossa casa, vemos telhados, paredes sem rebocos, tratores aplainando o solo e destruindo os morrinhos devastados também pela retirada indevida de areias, que, finalmente, depois de muitos danos causados a essa beleza natural, está sendo coibida. Questiona-se a passividade dos órgãos competentes. Apenas questiona-se.
Vamos falar um pouco do livro que conta a trajetória do Projeto Arco-Íris – Jauá, assim como dos jovens que participam com suas criações, destacando o talento desenvolvido através da leitura e escrita.
Sábado é dia de Arco-íris, é um livro de valor inestimável! Ele conta uma verdadeira história de amor entre livros, crianças e todos os envolvidos nesse projeto. Nunca pensei em transformar a nossa trajetória em um livro, mas, pessoas como Nell Morato e Nanci Penna além da Leia Livros Editora, sugeriram e tornaram isso possível. É um livro que poderá servir de inspiração para quem deseja, mas ainda não deu o ponta pé inicial para realização de um sonho. É o registro de um projeto que comprova que devemos, a despeito dos medos e das dificuldades, não desistir jamais de investir em ações que beneficiem crianças e jovens, ajudando-os a perceber a necessidade de ler e de fazer do livro um aliado para seu crescimento pessoal e intelectual
Gostaria que muitas pessoas o lessem.
Deixe uma mensagem para todos nós, autores, editores, leitores, crianças, jovens, adultos.
Continuemos a utilizar o livro como uma das principais armas para construirmos a base de dias melhores. Muitas crianças e jovens ainda preferem ganhar, de presente, celulares, vídeo games... Então, agreguemos um bom livro aos eletrônicos. Nas idas aos shoppings, visitemos as livrarias. Façamos com que nos acompanhem às feiras de livros, às bienais, leiamos para eles. Diminuamos o tempo em frente à TV e, aos poucos, estaremos desligando-a para darmos continuidade à leitura de um bom livro.
Para as crianças, repito a citação de: William Faulkner
“Leia, leia, leia. Leia tudo – bobagem, clássicos, bom e ruim, e veja como são feitos. Assim como um carpinteiro que trabalha como um aprendiz e estuda o mestre. Leia! Você irá absorver. Então escreva. Se for bom, você descobrirá. Se não, jogue pela janela.”