RELAÇÕES ENTRE A ARTE E A POLÍTICA
Há um entendimento de que, para ser política, a arte deve trazer em si conteúdos e temas engajados que sejam transmitidos ao espectador para torná-lo consciente, fazendo-o tomar posição. Essa é uma ideia limitada, pois está muito ligada a experiências do passado que instrumentalizaram a arte a serviço de programas políticos de poder.
Hoje, muitos teóricos e artistas argumentam que, em lugar de uma arte política, no sentido de que a experiência estética está implicada em uma política que lhe é própria; a saber, um jogo de significação que fica em suspenso entre a intenção do artista e a compreensão do espectador. Ou seja, por mais que artistas intencionem passar uma mensagem, não se pode antecipar ou determinar o exato efeito de uma obra artística no público, pois seus significados são abertos, e as interpretações também. Essa política da arte, ao invés de forjar explicações do mundo, tem como potencial reconfigurar a esfera do sensível a partir das experiências de cada um, do artista ao espectador.
Na arte contemporânea, são muitos os artistas que propõem trabalhos críticos que denunciam mecanismos de poder, formas de dominação e regimes de desigualdade. São obras visuais, mas também práticas colaborativas e trabalhos processuais que evidenciam certa vontade de politizar a arte.
Uma amostra da associação entre arte e política é(foi) oferecida pela 10ª Bienal do Mercosul na exposição BIOGRAFIA DA VIDA URBANA, no Memorial do Rio Grande do Sul. A mostra propõe(propôs) pensar, por meio da arte, os complexos processos de urbanização e de divisão social nas cidades da América Latina.
Já na entrada, o espectador é(foi) confrontado por uma obra potente nessa discussão, A FRAGILIDADE DOS NEGÓCIOS HUMANOS PODE SER UM LIMITE ESPACIAL INCONTESTÁVEL, de Rommulo Vieira Conceição. O artista baiano que vive em Porto Alegre apresenta uma parede comprimida por grades. Um olhar atento entenderá que se trata de uma casa espremida pelas cercas de segurança que confinam as pessoas nos seus espaços privados, como espécie de proteção frente à violência urbana. Contudo, não é um trabalho panfletário sobre o medo nas cidades, pois trata a discussão que propõe com sutileza, exigindo alguma imaginação para ser interpretado.
Ao lado, estão alguns trabalhos históricos que remeter à arte política latino-americana em seu momento inaugural, no contexto das ditaduras militares. As conhecidas garrafas de Coca-Cola de Cildo Meireles do projeto INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS, nas quais ele imprimia frases para fazer circular conteúdos subversivos à época, estão relacionadas ao trabalho em que Antonio Caro adultera a marca do mesmo refrigerante escrevendo “Colombia”. Entre ambas, há obras de Paulo Bruscky, cuja ironia remete à chamada arte postal dos anos 1970, quando artistas usaram meios como os Correios como forma de driblar a censura.
Próximo a esse conjunto, o gaúcho Marcelo Armani convida a uma reflexão ao apresentar uma série de corpos estirados ao chão moldados apenas com sal grosso – a instalação sonora se chama CARNE SECA. Há trabalhos mais explícitos em sua politização, como a bandeira do Brasil em que Paulo Climachauska tira suas cores e substitui o lema “Ordem e Progresso” por “Complexo do Alemão”. O trabalho é de 2008, antes da ação da “polícia pacificadora” no conjunto de favelas do Rio.
No Memorial do RS, também se veem obras que aparecem em outros espaços da Bienal do Mercosul, como as de Shirley Paes Leme e Tony Camargo. Não há problema em repetir artistas ao longo das exposições, mas se trata dos mesmos trabalhos, daí a sensação de déja vu que se repete em algumas das mostras desta edição.
Uma obra que convida(ou) o público a percorrer sua extensa narrativa como uma biografia da cidade é EU VI O MUNDO... ELE COMEÇAVA NO RECIFE. O painel de 12 metros de largura, realizado por Cicero Dias entre 1926 e 1929, é uma das mais importantes obras da história da arte brasileira. As mulheres nuas ali representadas causaram choque na época – a obra foi atacada por vândalos ao ser exposta em 1931.
Em uma das salas de projeção, é(foi) exibido um filme de Miguel Rio Branco. NADA LEVAREI QUANDO MORRER, AQUELES QUE ME DEVEM COBRAREI NO INFERNO retrata, na periferia de Salvador nos anos 1970, um ambiente de marginalidade social e instinto de sobrevivência em comunidades excluídas, confrontando promiscuidade e afetividade.
A cidade como ponto de partida para uma discussão sobre as conexões entre arte e política aparece em interessantes trabalhos fotográficos. O gaúcho Didonet Thomaz cria uma narrativa sobre ocupação arquitetônica e sua transformação em ruínas, enquanto Leonardo Finotti faz uma espécie de inventário da arquitetura moderna latino-americana retratando diversas cidades.
Também em fotografia, a Bienal apresenta trabalhos de Paulo Nazareth, brasileiro que tem ganhado destaque internacional com suas performances que envolvem extensas caminhadas, colocando em tensão as noções entre centro e periferia – ele já foi a pé de Minas Gerais aos EUA fotografando-se com nativos ao longo do trajeto com frases como “Vendo minha imagem de hombre exótico”. Discussão semelhante propõe o vídeo da dupla Allora & Calzadilla em que um jovem transforma uma mesa em um barco, remetendo às arriscadas diásporas de imigrantes pelas águas.
No Memorial do RS, a 10ª Bienal do Mercosul apresenta(ou) uma oportunidade para se pensar a política por meio da arte, mas acaba oferecendo uma noção restritiva, pois todas as obras são contemplativas, para serem vistas. Assim, deixa de lado trabalhos que, em lugar da ênfase visual, buscam criar situações de convívio, compartilhamento e participação que convidariam o público a experimentar e vivenciar um sentido mais amplo do que é político em arte.
Fonte: ZeroHora/Francisco Dalcol (Francisco.dalcol@zerohora.com.br) em 14/11/2015