O ARTISTA QUE TEM O NOME DE UM RIO
Danúbio Gonçalves, nascido em Bagé, em 1925, foi um dos maiores artistas plásticos da história do Rio Grande do Sul e do Brasil. Ele faleceu no último domingo (21 de abril), aos 94 anos de idade.
Deve ter no seu gene algo diferente de uma mãe ou de um pai co sonhos de viagem. Ou seria de valsas vienenses? Ou de cores? Danúbio Azul!
Fato é que me deparei com um ser leve, até dá para dizer suave, gentil e aberto quando o encontrei pela primeira vez nos altos do Mercado Público de Porto Alegre, em 1966. deu-me uma impressão bem diferente daquela que causou para um artista da velha guarda, nada leve, até dramático em tudo que fazia, que disse: como é que alguém com o nome de um rio pode ser um bom artista?
Mas ciumeiras à parte, ele foi um bom artista, um excelente professor, sem ciumeiras dos sucessos dos colegas, mas com muito ciúme do profundo conhecimento das técnicas de todas as áreas, especialmente da gravura. Um ciúme que o fez zelar sobre os procedimentos de sua arte, se estavam de acordo com os Cânones dos grandes mestres do passado. Ele não admitia regredir, estava sempre na procura do aperfeiçoamento, dele e de seus alunos, aos quais ele contava todos os segredos, não ficado nada para si, como arma. Aliás, ele sabia que esse tipo de arma ligeiro se transforma em armadilha, em prisão daquele que, ao usá-la, se fecha num casulo sem diálogo, como numa solitária.
Me lembro bem como Danúbio carregava seus valiosos livros de arte embaixo do braço para mostrá-los aos seus alunos no Atelier Livre da Prefeitura, numa época em que revistas de arte eram importadas, livros raros e caros, mas ele os tinha e compartilhava. Nós nos debruçávamos sobre as gravuras de Dürer e Goya para descobrirmos as águas tintas e águas fortes, os traços dos desenhos, as transparências na litografia, as nuances e contrastes. Discutíamos como os grandes mestres do passado haviam conseguido aquelas maravilhas, e mestre Danúbio sempre sabia o caminho.
Vivíamos uma disputa acirrada entre a arte abstrata e figurativa, numa época em que o abstracionismo gestual e informal, muito cultivado nos Estados Unidos, tentava se contrapor ao realismo social atrás da cortina de Ferro, no qual o Grupo de Bagé se inspirava um pouco, tal qual na mesma época o Atelier Coletivo do recife, fundado por Abelardo da Hora.
Os dois grupos retratavam temática regional, procuravam levar a arte para o povo, mostravam o homem trabalhador, o artista-artesão que trabalhava coletivamente. O homo faber
Danúbio ficou famoso pelas suas xilogravuras das charqueadas.
Quando surgiu a arte conceitual, Danúbio ria, ironizava a falta de técnica e conteúdo, massageava com a mão direita o nariz e nós sabíamos que logo viria uma observação irônica e sarcástica. Se faltava a figura, ele só via o nada, o que provocava acirradas discussões no Atelier Livre, nessas alturas já na Rua Lobo da Costa, onde preparávamos almoços e discutíamos arte, os dois no calor devido. Saudades desses tempos! Onde se briga hoje como nós brigávamos naquela época? Será que nós ficamos mais mansos? Ou foi a arte?
Danúbio foi um aventureiro, se metia no Yellow Submarine dos Beatles e entrou na Arte Pop, viajou ao Marrocos e nos trouxe sua outra visão de mulheres, desta vez o contrário das suas desnudas sensuais.
Ele estava sempre em movimento, como aquele rio majestoso que atravessa a Europa. Ele não tinha uma veia para as artes, mas sim um rio, que desaguou na grande bacia rio-grandense dos artistas que o absorviam e que hoje se banham nas suas águas.
Fonte: Correio do Povo/CS/Maria Tomaselli/Artista Plástica em 27/04/2019