CAPAZ: UM TUTORIAL
Depois da repercussão de um post no Facebook sobre o assunto, jornalista, escritor e tradutor aceitou o convite de ZH e ampliou a discussão sobre o curioso uso da expressão CAPAZ no Rio Grande do Sul.
Menos conhecida do que a interjeição “Bah”, a expressão “Capaz” - em suas múltiplas e talvez inesgotáveis aplicações – é uma das coisas mais esquisitas e mais insubstituivelmente úteis do dialeto sul-rio-grandense. Por sinal, só descobri que o nosso “Bem capaz” era um exemplo de fala regional quando tinha já 30 e tantos anos. Até então, achava que fosse uma expressão universal e que provavelmente haveria um equivalente em mandarim. (O mesmo ocorreu com certa expressão que só os bajeenses entendem e que para o resto da espécie é hermética: Ué-saia. Mas isso é assunto para outro momento.)
Num primeiro patamar semântico, esse “Capaz” dialetal quer dizer “possível”. Nesse caso, é voz comum em várias partes do Brasil. A acepção aparece lá nas profundezas de um verbete no Aurélio – mas não no Houaiss. Segundo o estimado dicionário, o “capaz” como índice de possibilidade também ocorre em Angola e Moçambique. Aqui vai um exemplo simples:
- É capaz que eu vá hoje na festa.
Ou seja: Não garanto, mas é possível, ou até provável, que eu vá.
Contudo, com breves mudanças na frase, a palavra adquire entre nós o significado oposto – e aí diversão começa. Se eu eliminar a oração principal e colocar o verbo no subjuntivo, com um ponto de exclamação, assim:
- Capaz que eu vou nessa festa!
Então o significado pode ser, dependendo da entonação:
- De jeito nenhum eu vou nessa festa!
Ou melhor:
- Que coisa mais absurda alguém sequer cogitar que eu vá nessa festa!
Esse significado de negação enfática pode ser intensificado com a adição de “mas” ou “bem”, ou ambas as coisas, no início da frase. Por exemplo
- Mas capaz que eu vou nessa festa!
- Bem capaz que eu vou nessa festa!
- Mas bem capaz que eu vou nessa festa!
“Bem capaz”, sozinho na frase, sempre tem esse sentido de uma aniquilação absoluta de possibilidades. O “Bem capaz” é a nêmesis de um assunto: encerra-o com veemência de guilhotina. Uma vez pronunciado, não há mais volta. É preciso frisar: o “Bem capaz” não significa, aqui, mera imprecisão ou vaga probabilidade. Significa um “não” exacerbado, um golpe de gládio sobre o nó górdio do possível.
- Vai à praia?
- Bem capaz!
Ou seja, não vou de jeito nenhum, não vou nem morto à praia, quero distância da praia, abomino o som da palavra praia. Bem capaz que eu vou pra praia!
Mas isso nem sempre soa brutal; às vezes aparece como uma forma de camaradagem agressiva e bonachona:
- Eu acho que bebi demais ontem de noite e incomodei vocês.
- Bem capaz, meu!
O que significa:
- Nem pense nisso, esqueça! (mas esqueça mesmo, senão apanha.)
Seguindo a mesma progressão, “Capaz” ou “Bem capaz” podem significar “De nada”:
- Bah, muito obrigado por me salvar daquela cruzeira!
- capaz! (Ou seja: não precisa agradecer, foi um prazer afugentar o ofídio.)
E também como resposta universalmente misericordiosa a um pedido de desculpas:
- Foi mal. Estraguei tudo. Desculpa aí.
- Capaz!
Esse último significando: não precisa pedir desculpas, mas já que pediu, está desculpado, e não se fala mais nisso.
Nesse sentido, o “Capaz” se parece com o uso que se faz, em várias partes do Brasil, da expressão “Imagina!”.
“Capaz” - sem o “bem” na frente – também pode significar “como assim”, coisa que muitos gaúchos não notam e usam sem perceber:
- Meu filho quebrou a perna.
- Capaz?
Ou também:
- Capaz que vocês se separaram?
Agora, significando:
- Como assim, vocês se separaram?
É possível que o uso negativo do “Capaz” tenha começado como forma de ironia. Por exemplo, quando alguém nos faz uma pergunta cuja resposta é evidente, e então dizemos o contrário do que queremos dizer:
- Vais no show?
- Claaaro que vou! Nossa, já tô indo!
Significando: não há a menor chance de que eu vá nesse show e me espanta que alguém me pergunte isso. Um dado curioso: o alongamento da primeira sílaba desse Claaaro irônico tem o mesmo sentido de eloquência destruidora que damos ao Beeeem capaz.
Todas essas variações de sentido, oscilando às vezes entre antípodas semânticos, dependem das nuances da fala. Há momentos transcendentais, em que o próprio tecido do espaço-tempo é desafiado. “Capaz que não”: dependendo da entonação, pode significar “Talvez não” ou “Absolutamente sim”.
Após tornar público meu interesse pelo assunto, leitores de diversos lugares do Brasil me informaram que o “capaz” como negação também se encontra no Paraná, em Santa catarina, no interior de São Paulo (não na capital), em Minas e Goiás. Haverá algum vínculo entre essas transmigrações de sentido e as antigas rotas do tropeirismo pelo interior do Brasil? Capaz que sim. Capaz que não.
Fonte: Zero Hora/Caderno doc/José Francisco Botelho/Autor de “A Árvore que Falava Aramaico”, tradutor de “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, entre outros, em 04/02/2018