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Ale Santos e a História do Povo Negro no Brasil
Ale Santos e a História do Povo Negro no Brasil

COM A PALAVRA ALE SANTOS

 

É NECESSÁRIO TRAZER OLHARES NEGROS E INDÍGENAS PARA A HISTÓRIA DO BRASIL.

 

Escritor, 32 anos. Formado em Publicidade e Propaganda, tornou-se referência ao usar as redes sociais para criar narrativas que contam histórias de personagens e população em condição de invisibilidade, contestando versões da historiografia oficial.

 

Foram necessários 276 caracteres para que o autor de ficção científica Ale Santos, morador de Guaratinguetá (SP), saísse do anonimato e angariasse uma multidão de seguidores no Twitter. Quando ele escreveu uma thread (sequência de mensagens) sobre o Holocausto no Congo promovido pelo rei belga Leopoldo II (estima-se que tenha sido quase 4 milhões de mortos entre 1998 e 2004), ganhou visibilidade por trazer à tona um fato histórico desconhecido por grande parte das pessoas. Só o primeiro tuíte teve 1 milhão de visualizações. Ele repetiu a estratégia de divulgação para outras tantas narrativas que haviam sido apagadas, crimes que foram acobertados e conquistas de heróis e heroínas esquecidos pela historiografia oficial. O trabalho de pesquisa rendeu a Santos (ou @savagefiction) espaço como colunista em diversos portais e a oportunidade de lançar um livro neste semestre, detalhando algumas dessas narrativas. Em entrevista por telefone, ele fala sobre as causas da invisibilidade histórica – entre as quais está o racismo.

 

 

Quando você começou a fazer uso das threads (mensagens em sequência) do Twitter para contar e resgatar histórias?

Faz menos de um ano. Sou formado em Publicidade e Propaganda, mas há seis anos me interessei pelo storytelling (termo associado a narrativas que contam histórias) e trabalho profissionalmente com essa área. Paralelo a isso, estudo e pesquiso, há mais de uma década, a minha própria cultura, a cultura afro-brasileira. Porém, nunca havia feito a conexão entre esses dois conhecimentos, nem pensado em expô-los nas redes sociais. Eu considerava estranho, inclusive, comentar a minha própria mensagem (característica da sequencialização no Twitter), mas um dia, por curiosidade, peguei meu celular e quis experimentar o funcionamento do threads. Tive um bom engajamento e pensei que aquela estrutura poderia funcionar para montar narrativas mais dramáticas. Quando percebi que as pessoas estavam interessadas nesse tipo de conteúdo, comecei a planejar a contação dessas histórias.



Você opta por relatar histórias de personagens negras desconhecidas. De onde surgiu essa motivação?

Sempre procurei fazer trabalhos que dialogassem com minha própria história e identidade, e, quando comecei a trabalhar com storytelling, percebi que as narrativas em geral são totalmente colonizadas. Os autores que temos como referência são Ernest Hemingway e Joseph Campbell, por exemplo. Quando me desconectei desse tipo de produção e voltei meus olhos para o realismo mágico, que é latino-americano, quando descobri Gabriel García Márquez e Ariano Suassuna, entendi que poderia, por meio da escrita, mostrar o país como um povo que é também afro-brasileiro. Nós (negros) fomos excluídos da historiografia formal, nossa história não consta nos livros, a não ser para falar do período escravocrata. Roubaram o nosso poder de contar a nossa própria trajetória e também o de fazer parte da construção da história do país. Ser escritor negro é um ato político no Brasil, porque a gente acaba provocando discussões e desconstruindo estereótipos que são constantemente reforçados e atualizados há 400 anos.

 

 

Que estereótipos são esses?

Quando o branco olha para o negro, ele enxerga a bárbarie, a favela, a malandragem, a hipersexualização dos corpos, porque ele foi ensinado a ver isso. Filósofos do século 17 escreveram que “o negro não tem valor cultural, não tem valor histórico”. As pessoas se acostumaram a olhar para essa população com desprezo. Não conseguem descolar essa série de estereótipos negativos dessas pessoas e não veem que estamos sujeitos a todoa os tipos de emoções e sentimentos como qualquer outro indivíduo que tem sua humanidade reconhecida. A escravidão deixou marcas muito profundas na psiquê da comunidade negra, afinal, foram centenas de anos vivendo sob um regime no qual o sistema te forçava a ficar no papel de subalterno, sendo tratado como mera propriedade. Resgatar as narrativas do povo africano, dos seus heróis e heroínas, preencher o imaginário da população afro-brasileira com essas referências, e não mais com as eurocêntricas, é fundamental para a afirmação da nossa autoestima e emancipação.

 

 

Esse viés eurocêntrico que predomina na historiografia oficial de algum modo tem sido contestado.

Sim, mas processo de descolonização do pensamento, de maneira geral, aconteceu depois que Gana tornou-se independente, por volta de 1960. E na América Latina a descolonialidade começou chegar só na década de 1990. Até isso ocorrer, milhares de brasileiros já haviam sido educados com o olhar racista dos livros didáticos que colocavam os europeus como os detentores do conhecimento e da civilização e classificavam todas as outras civilizações como bárbaras e selvagens. Eu era um garoto quando os primeiros livros de historiadores latino-americanos perceberam que a história contada, até então, era racista. A nova historiografia começou a fazer o cruzamento entre os registros escritos com oralidade para poder construir um olhar mais afro-centrado. E é isso o que precisamos fazer. É necessário trazer olhares negros e indígenas para a História do Brasil, porque a construção da história deste país tem o suor e o sangue dessas etnias.

 

 

Com a predominância histórica do olhar eurocêntrico, é difícil resgatar as histórias contadas por você?

Muitas vezes, sim, porque a trajetória dessas personagens, dos líderes quilombolas e de determinados episódios da nossa trajetória, foram ignorados pelos historiadores. Esse tipo de dificuldade não é encontrada quando queremos contar a vida de pessoas brancas, porque elas são entendidas e lidas social e tradicionalmente como produtoras de grandes feitos. Mas procuro olhar para as lacunas referentes à cultura negra e tento preenchê-las. Para isso, resgato detalhes, investigo e garimpo informações. Algumas threads demoraram três horas para serem construídas, ou seja, rapidamente, mas há muitas outras que até hoje estou em busca de dados suficientes para conseguir formar uma linha narrativa realmente coerente. O interessante desse processo é o que ocorre depois. Já recebi diversas mensagens de professores que levaram meu trabalho para sala de aula para que, a partir dali, os alunos desenvolvessem, por exemplo, desenhos e histórias em quadrinhos.

 

 

Quais as consequências desse apagamento e da invisibilidade das populações negra e indígena para a história e a identidade do Brasil?

É importante lembrar que houve, no Brasil, além do genocídio epistêmico das populações negra e indígena, um plano de embranquecimento, logo, de extermínio dos negros co a abertura dos nossos portos para a chegada de imigrantes, principalmente alemães e italianos. Essa política pública tinha como objetivo provocar o desaparecimento da população negra em até quatro gerações. No plano subjetivo, o aniquilamento epistêmico reforça o mito da democracia racial no Brasil. Sem o conhecimento da nossa própria história, passamos a acreditar que somos todos iguais, afirmação essa que é mentirosa, porque ela encobre as dores, os danos, o sofrimento de uma parcela da população em prol da homogeneização étnica. Sem o conhecimento do nosso passado, abraçamos mentiras, negamos as atrocidades cometidas no presente e que precisam, sim, ser expostas para que não sejam repetidas, para que os números de assassinatos contra a população negra não permaneçam em curva exponencial ascendente.

 

 

Tem surgido um movimento consistente de criação de contranarrativas. A que você credita isso?

A história começou a ser recontada na década de 1960. Agora, temos ferramentas para confrontar o pensamento eurocêntrico da academia, e isso pode ser percebido tanto na produção de livros quanto de séries e de filmes. Temos observado um movimento global de pessoas negras galgando postos de protagonistas em suas respectivas áreas de atuação, e isso colabora para a criação de novas histórias, com novos olhares. No Brasil, iniciativas que buscam desmistificar e quebrar estereótipos crescem a todo tempo. Não é por causa dos quatro anos que estão por vir que as pessoas estão se levantando e criando contranarrativas, mas por causa de um período que escravizou milhares de pessoas e que tem consequências até hoje. Infelizmente, a população negra sabe o que é ser oprimida por racistas. Sobrevivemos ao cativeiro, sobrevivemos à violência corporal e psíquica, sobrevivemos a um projeto de eugenia e, hoje, somos maioria na população. O que estamos vivendo agora e o que viveremos nos próximos anos será difícil, sim, mas nós já passamos por situações bem piores.

 

 

Para você, o que as threads significam?

Meu propósito é ajudar a construir, a reconstruir essas narrativas que são as joias que nossos antepassados carregaram no corpo e na alma e que ficaram escondidas, mas que, agora, estão sendo levadas a público por diversas fontes – uma delas, por exemplo, foi a escola de samba Mangueira (agremiação que no último Carnaval carioca levou para a avenida o enredo em homenagem aos heróis populares que foram omitidos dos livros de História do Brasil). Esse processo é coletivo. Quem está ajudando a recontar essas histórias está auxiliando a reerguer o império cultural afro-brasileiro.

 

 

Quando um grupo minorizado passa a contar sua história, ele rompe o ciclo da “história única”, como diz a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. É isso?

Sem dúvida. Há um ditado africano que diz que, enquanto o leão não tiver seus próprios contadores de histórias, ao falar sobre a caça, ele sempre aplaudirá seu caçador. Ou seja, quando se assume o protagonismo da própria narrativa, você tem a chance de reescrever os pontos de vista que foram silenciados, que foram exterminados pelo epistemicídio, pela narrativa única eurocêntrica que era majoritária nas colônias. Hoje, esses pontos de vista estereotipados estão sendo reconstruídos com novos escritores assumindo protagonismo em várias dimensões da sociedade.

 

 

Grupos historicamente minorizados estão conquistando espaços. Mas também há uma resposta reacionária que se manifesta tanto no mundo real quanto na internet. Como você lida com isso?

A questão dos haters é muito difícil. A maior parte das pessoas que têm acesso a banda larga pertence à classe média, classe média alta (dados do IBGE indicam que 32,7% das pessoas com renda menor do que um quarto do salário mínimo acessam a internet, enquanto o índice chega a 92,1% entre os que ganham mais de 10 salários). Infelizmente, os negros não estão muito presentes nesse ambiente por limitações financeiras, então, vários assuntos são discutidos por uma massa que não é sensível à causa racial e que chega a criar, inclusive, ambientes tóxicos para quem reivindica ou contrapõe algum argumento. Há pessoas preconceituosas por ignorância, por desconhecimento sobre a história, por não entenderem o impacto da escravidão, que tendem a reproduzir o senso comum. Mas há também os grupos supremacistas que, mesmo buscando o confronto direto como uma Ku Klux Klan, almejam o controle da narrativa, o silenciamento de pautas raciais, sociais e de gênero. Esses grupos se organizam para atacar pessoas nas redes sociais e levantar hashtags. Quem está na mira dessas milícias digitais tenta se proteger. Ao mesmo tempo, na internet há pessoas que dialogam comigo e gostam do que produzo.

 

 

Você falou que os próximos anos serão difíceis no país. Para onde acredita que vamos?

O Brasil vive uma falsa democracia racial. Isso foi instaurado pelos governos militares, na época da ditadura, e inspirado na literatura de Gilberto Freyre, que pregava a ideia de que todos somos iguais, que somos tão miscigenados que é difícil definir quem é negro ou branco, logo os problemas de racismo não existiam. Isso é uma grande mentira. Desde 1930, os movimentos negros e pensadores como Abdias nascimento, que escreveu um livro sobre o genocídio do povo negro, lutam contra essa falácia. Porém, esse argumento ainda impera. Muitas pessoas acreditam que não há problemas raciais, mas basta você olhar para as estatísticas para ver que essa tese se estraçalha. O Brasil é extremamente racializado. Temos um país para quem é branco e rico e outro para quem é preto e pobre, diversas pesquisas mostram isso. Temos um governo extremista de direita, que empunha de maneira férrea essa bandeira de que somos todos iguais. Quando um governo surge com essa ideia, esse conceito, geralmente, se quebra. Fernando Henrique Cardoso uma vez disse que nós intensificamos os problemas sociais e raciais quando lidamos com indivíduos desiguais sem considerar suas desigualdades. Por exemplo, o pacote anticrime do ministro Sergio Moro: ele tem efeito totalmente diferente para quem é branco da classe média alta e para quem é negro e pobre e vive nas periferias. As medidas desse plano aumentarão o número de mortes dos negros. Se quisermos alcançar a equidade, será preciso encarar os problemas de outra maneira. Desse jeito, a violência, a pobreza e o analfabetismo vão aumentar. E assassinatos como o de Evaldo dos Santos (que foi morto por 80 tiros disparados por militares do exército no dia 7) serão ainda mais comuns.

 

 

Têm sido noticiados diversos casos de violência contra a população negra. Além do caso de Evaldo, um jovem foi morto por um segurança de uma rede de hipermercado no Rio de Janeiro. O que essas mortes dizem sobre o Brasil?

No começo da República, foi construído o estereótipo de que os negros são criminosos, e o então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, assinou um decreto com intenções eugenistas de migração para branquear o país. Essa associação imediata entre negritude e criminalidade era reforçada pelos programas de televisão e pairava no imaginário social, embora de maneira não tão explícita. Mas, quando um presidente diz que “bandido bom é bandido morto” e a sociedade valida esse discurso, começamos a ver esses escândalos partindo tanto do setor público quanto privado de segurança. No caso do Evaldo, por exemplo, não houve u pronunciamento oficial do presidente, nem da ministra dos Direitos Humanos, nem do ministro da Justiça, que, quando se manifestou, minimizou o episódio falando que “pode acontecer”. Nenhum dos três demonstrou espanto com o fato de Evaldo ter sido assassinado na frente do filho de sete anos. Situações como essa instigam ainda mais o preconceito e o racismo que são evidentes e estruturais no Brasil.

 

 

O que significa dizer que o racismo é estrutural?

As pessoas tendem a acreditar que racismo é só ofensa verbal. O racismo, na verdade, é um conjunto de ideias, de teorias que foram, inclusive, validadas pela ciência e fazem parte das estruturas sociais. Algumas instituições brasileiras foram criadas com o pensamento racista. O racismo strutural é constituído de engrenagens que empurram os negros para a periferia geográfica, mas também para a periferia das estatísticas educacionais, sociais e de saúde. Quando a escravidão foi abolida, o racismo não foi extinguido. Os supremacistas brasileiros não criaram confronto direto com os negros, porque éramos maioria no período escravocrata, então, criaram recortes demográficos para praticar o apartheid. Há uma estrutura de pensamento que ensinou as pessoas a desvalorizarem vidas negras. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil (dado divulgado pela CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, que revelou que, em 2016, 23,1 mil jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados anualmente no país, o que corresponde a 63 por dia e um a cada 23 minutos). Isso é um escândalo.

 

 

Como superar esse quadro adverso em direção à equidade?

Em primeiro lugar, é necessário entender o impacto da escravidão em nossa sociedade. Aceitar que ela foi construída tendo como pilar um pensamento. Uma vez cientes disso, vamos conseguir entender que não somos todos iguais. E que isso não é um problema, porque a perfeição do Brasil está justamente na diversidade, e não na higienização da pessoa.

 

 

UMA THREAD DE ALE SANTOS

 

A sequência abaixo foi publicada na última quarta-feira (24 de abril). Confira a reprodução de alguns dos tuítes que a compõem

 

ALE SANTOS @Savagefict

 

Esta #thread ……. vai mostrar como a falácia da igualdade promove o extermínio da diversidade cultural. Texto de @Savagefiction. Arte de @illustradoug

 

Imagine que um africano, um guarani, um japonês, um alemão e um português sentem em uma mesa e decidam sair de lá só quando conseguirem se tornar um só povo.

 

A primeira coisa foi encontrar uma língua única. Cada um abandonou suas tradições linguísticas. A tradução das palavras alterou o sentido deideias, provérbios e filosofias.

 

Música, comida e dança estavam ligadas às tradições ancestrais. Cada um abriu mão de algo “sagrado” para conviverem. Os rituais mudaram ou simplesmente acabaram.

 

Com tempo, suas famílias se misturaram e as características físicas també se perderam. Esse processo fez romper culturas milenares. Eles se tornaram “todos humanos” e deixaram de ser africanos, guaranis, japoneses…

 

Até aqui todos abandonaram “democraticamente” sua cultura. Agora, imagine se um ou dois desses povos (mais parecidos entre si) assumissem o poder e as escolhas sobre o que, e como iria se misturar.

 

Imagine que eles propagassem sua religião como a principal e criminalizassem as outras. Que sua cosmovisão imperasse, que suas músicas fossem consideradas “alta cultura”, e as outras, taxadas de “incultas e selvagens”.

 

Pensem o quão terrível seria se esses povos incentivassem a miscigenação seletiva, para que todos ficassem parecidos com eles. Para acelerar as coisas, eles constroem estereótipos para inferiorizar as outras etnias.

 

Quando conseguem conquistar a hegemonia cultural eles passam a defender que a sociedade é igualitária e soberana. Aqueles povos que se tornaram minorias lutam para manter vivas suas histórias e tradições, mas são rechaçados por isso.

 

Mesmo defendendo que “todos são humanos e nada mais”, as etnias dominantes mantêm suas colônias tradicionais por todo o país e criticam quando as etnias diferentes tentam demarcar seus territórios.

 

Antagonizam quem quer apenas manter viva a história de seu povo. Manter as raízes que dão consciência de quem somos e qual nosso impacto na sociedade. Por isso a gente ainda tem colônias italianas, alemãs, japonesas, quilombos e as reservas indígenas (tentando sobreviver).

 

     

 

Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Iarema Soares (iarema.spares@zerohora.com.br) em 28/04/2019