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Somos Todos Filhos da Escravidão, de Mário Maestri
Somos Todos Filhos da Escravidão, de Mário Maestri

SOMOS TODOS FILHOS DA ESCRAVIDÃO

 

Historiador analisa os efeitos dos séculos anteriores à Abolição na população do país até os dias de hoje.

 

Nos momentos de grandes crises, volta-se comumente ao passado, à procura de fundamentos sólidos para escorar não raro para visões de mundo e projetos estrombólicos. No nosso país se tem feito o mesmo com criatividade singular. Somos uma nação imensa, de riquezas indescritíveis e de passado terrível, o que ajuda a explicar nossa triste sorte de gigante encepado. Ao debruçarmo-nos sem medo sobre o espelho da história, podemos arrancar dele visões reais do passado que contribuam para a superação dos fantasmas que nos assombram.

 

O Brasil nasceu feitorizando a população nativa que, já nos anos 1560, dizimada, era incapaz de sustentar a fome pantagruélica dos engenhos açucareiros em expansão. Na época, ninguém chorou os males sem fim daqueles que haviam sido descritos por Caminha como gentis brasis. O padre da Nóbrega dedicou poema épico a Mem de Sá e ao genocídio dos tupis que resistiram ao jugo português. Os autóctones foram substituídos por cativos africanos, que sustentaram a produção dos campos e das cidades até quase o 13 de maio de 1888. Mais de dez milhões de adultos, adolescentes e crianças, de ambos os sexos, chegaram nas Américas. Para cada um que aportou com vida, três outros morreram na captura e na viagem. O tráfico transatlântico para o Brasil encerrou-se apenas em 1850, sob a ameaça dos canhões da marinha inglesa.

 

O Brasil deglutiu o maior número de africanos: mais de cinco milhões. Multidão infinita, considerando-se a realidade demográfica da época. Até 1850, eles foram despejados aos borbotões, como animais, nas praias paradisíacas do Brasil, para que a acumulação de riquezas avançasse. De 1850 até a agonia da escravidão, o tráfico interprovincial substituiu o transatlântico. Nesses anos, propunha-se que o braço africano civilizasse o Brasil dos escravistas. A produção urbana e rural apoiou-se em operários feitorizados, que determinaram a história econômica, social e política do país. O cativo sustentou a expansão das fronteiras do Brasil em desfavor dos castelhanos. Em 1822, o unitarismo e centralismo monárquicos foram impostos para assegurar a ordem escravista, a grande questão social e política do Primeiro e do Segundo Reinado. Com a Abolição, em 1888, a Monarquia ruiu, em 1889, como árvore sem raízes.

 

Para manter a lucratividade negreira, o cativo devia ser esfolado pelos empresários, trabalhando como um gigante e consumindo como um anão. Sua vida produtiva e biológica esvaia-se na produção. Para o empresário, não era rentável criar cativos. As baixas na produção eram completadas por jovens chegados da África ou, após 1859, das províncias marginais. A escravidão transferia para a sociedade africana o custo de produção do trabalhador, chegado no Brasil em idade produtiva. O tráfico atlântico civilizou a sociedade escravista do Brasil e vergastou o continente africano.

 

As multidões de africanos originários de múltiplas regiões da África Negra não despertaram curiosidade aos empresários, quanto às suas culturas, línguas, religiões, etc. Eram apenas braços para labuta sem fim. Uns 50% dos africanos desembarcados no Brasil falavam línguas bantos. Ministrava-se a catequese sumária em português, língua que a maior parte dos ouvintes apenas entendia. Aqui e ali, ensaiou-se a elaboração de manuais de línguas africanas dominantes no Brasil, para facilitar a feitorização dos trabalhadores. A ignorância-despreocupação sobre a civilização africana e a visão do cativo como ser inferiores justificava o martírio a que eram submetidos. Afirmava-se igualmente que vivia melhor no Brasil do que na África.

 

Os escravizados contribuíram de modo essencial à formação do Brasil. Não se tratou, porém, como muitos propõem, de contribuição cultural étnica que prenhou nossa cultura e história, ao lado de outras etnias. A civilização brasileira não nasceu da fusão-superposição hierarquizada das ditas três raças-culturas fundadoras: a nativa, a africana, a europeia. Não compreenderemos nosso passado a partir da simples inclusão dos substratos esquecidos ou relegados, como propõe a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, apesar de suas boas intenções.

 

De 1532 a 1888, o Brasil foi construído pela organização social escravista, sustentada estruturalmente pelo trabalho africano e afrodescendente. Os próprios lusitanos que aqui se estabeleceram foram metamorfoseados pela escravidão colonial. Portugueses de Portugal e do Brasil foram irmãos que cresceram em famílias e sob influências diversas. Por além das proximidades, Portugal e Brasil foram e seguem sendo universos diversos. O mundo do trabalho português conheceu a liberdade civil há mais de setecentos anos, quando superou a servidão da gleba. No Brasil, há apenas 130 anos, o trabalhador era propriedade do explorador.

 

O africano arrastado ao Brasil desde regiões díspares, foi metabolizado pela ordem escravista colonial, ainda mais radicalmente. Viu trituradas, engolidas, assimiladas a liberdade que conhecia na África; os laços familiares e de linhagem; a língua materna; usa atividades, costumes e crenças, expressões das sociedades em que nascera. O que manteve e defendeu no Novo Mundo amargo, passou através do crivo moedor do escravismo colonial. A atual procura de raízes e laços africanos intocados enseja a produção de Áfricas imaginárias, comumente forjadas por ditames político-ideológicos. Não raro, essa reconstrução arbitrária olvida a raiz-mãe da civilização brasileira, a mais consistente ordem escravista negro-africana das Américas.

 

A inserção isolada de elementos de cultura africana e afro-brasileira nos currículos constituem quimera perigosa. Ela acaba se restringindo às antigas propostas da contribuição negro-africana na música, dança, carnaval, culinária. Mais grave ainda, tal visão sugere que esse passado e tradição pertenceriam apenas às frações da população com alguma ascendência afro-brasileira, sendo estranha àquelas que possuem outras tradições culturais.

 

A escravidão e a África Negra não são páginas da formação social brasileira, ao lado de tantas outras. São a espinha vertebral que constituiu e consolidou a civilização nacional. Trata-se de um passado e um patrimônio que, no em e no mal, seguem vivos, envolvendo a todos os brasileiros, não importando as origens étnicas. Ainda que os aspectos negativos dessa herança pesem sobremaneira sobre as comunidades com forte afro-ascendência, sobretudo as mais pobres.

 

De um modo e de outro, todos os brasileiros foram e são ainda aleitados por esse terrível passado que dividiu nossa nação em duas grandes classes antagônicas: escravizadores e escravizados, torturadores e torturados, exploradores e explorados. Ainda hoje, descendemos de escravistas e de escravizados, segundo a situação social que conhecemos e as visões de mundo que abraçamos. E não devido às nossas múltiplas ou singulares ascendências étnicas.

 

 

Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Mário Maestri/Historiador e autor de “A Terra dos Males Sem Fim. Agonia Tupinambá no Litoral Brasileiro (Século XVI)”, 3 ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. Com colaboração da linguista italiana Florence Carboni, da UFRGS, em 16/02/2019.