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Confidências de Getúlio Vargas
Confidências de Getúlio Vargas

CONFIDÊNCIAS DE VARGAS

Livro com cartas entre Getúlio e sua filha Alzira revela uma mulher influente e um ex-presidente ansioso por voltar ao poder após o Estado Novo, além de permitir uma reinterpretação do chamado POPULISMO VARGUISTA.

LIVRO: VOLTA AO PODER – A CORRESPONDÊNCIA ENTRE GETÚLIO VARGAS E A FILHA ALZIRA (1946-1950) – Organização de Adelina Novaes e Cruz e Regina da Luz Moreira. FGV Editora, 912 páginas.

 

Uma publicação preciosa. É como se pode sintetizar os dois tomos, com mais de 900 páginas, de VOLTA AO PODER, que traz a correspondência entre Getúlio Vargas e sua filha Alzira, de 1946 a 1950, organizada por Adelina de Novaes e Cruz e Regina da Luz Moreira. Deposto, Vargas retira-se para São Borja num “autoexílio”, e Alzira compromete-se a relatar os acontecimentos da capital do país. O período é dos únicos em que ele fica à margem do poder – em oposição a Eurico Gaspar Dutra, que ele próprio ajudara eleger num pleito cuja vitória do brigadeiro Eduardo Gomes era dada como certa, As cartas são principalmente entregues por familiares e amigos, pois pouco se crê no correio da “democracia de Dutra” para assuntos confidenciais.

  

A documentação não deixa dúvida de que Vargas sempre pretendeu retornar ao poder. Testara sua popularidade ao eleger-se senador por Rio Grande do Sul e São Paulo e deputado por mais meia dúzia de Estados, algo permitido à época, para um Congresso Constituinte cuja posse protelou ao máximo. Se não chega justificar a ditadura do Estado Novo, concebe seu governo como de industrialização e forte crescimento, mesmo com as adversidades da guerra, em contraste com o de Dutra, a quem atribui inflação, gastança e submissão aos EUA. A aliança com esse país só se justificaria no contexto de guerra. Se mostrava aversão ao comunismo, também desconfiava dos reais interesses do aliado – para ele, sobretudo, o controle das matérias-primas e, principalmente, do petróleo.

 

Alzira relata a eclosão de greves no Rio e em São Paulo, as quais atribui à carestia, e a repressão aos trabalhadores. Vargas a lembra que se estava em governo “tipicamente reacionário”, que “em nome da ordem fuzila o povo e, em nome da liberdade, ampara os ricos contra os pobres”. Expressa consciência, então, de que o Estado Novo não fora derrubado por ser ditadura, mas pelo nacionalismo e pelas leis sociais: a oposição era a mesma que antes de 1930 rechaçava voto secreto e feminino, justiça eleitoral e salário mínimo. Por trás do liberalismo, estava o governo das “oligarquias”.

 

Tais afirmações inéditas que ora vêm à lume ajudam repensar o assim chamado “populismo varguista”, interpretação em voga entre intelectuais marxistas dos anos 1960 e 1970, mais tarde apropriada pelo pensamento conservador. O fenômeno foi sempre associado à manipulação de massas por uma liderança que delas se aproveita com discursos de fachada - um engodo. Claro que Vargas dá a sua versão dos fatos, mas os documentos, por serem confidenciais, contribuem para ilustrar o que ele (e Alzira) de fato pensava(m), portanto, longe de “jogar para a plateia” e “dar anéis para não perder os dedos” - expressões sempre ligadas didaticamente ao populismo. Antecipa a carta deixada por ocasião do suicídio: em nenhuma hipótese iria trair ou se distanciar dos trabalhadores e do que entendia como “interesse nacional”: “Sou o único burguês em que eles confiam”. Frase preciosa para decifrar o enigma da esfinge varguista.

 

Restam duas observações. Uma é sobre Alzira, que vai além de mera relatora, pois opina e critica. Mostra conhecimento dos meandros da política brasileira. Personagem ainda pouco estudada e biografada, surpreende: transforma-se na conselheira e talvez única pessoa ouvida por Vargas e capaz de contradizê-lo. Na prática, a mulher mais influente do Brasil. Não à toa, diz ela, chamavam-na de “grande homem”. Atribui o gosto pela política ao sangue são-borjense e, com ironia, à “malícia feminina” a capacidade para entender certos fatos.

 

A outra diz respeito às dificuldades financeiras da família que, se não era pobre, vivia com orçamento apertado, com encomendas simples que Vargas, da fazenda, fazia questão de ressarcir.

  

D. Darcy ficara no Rio de Janeiro, e as despesas eram muitas. Ilustra o relato de Alzira, ao explicar vir visitá-lo sem sua filha Celina: considerava cara a viagem aérea do Rio a São Borja, de modo que optara fazer o trecho de Porto Alegre a esta última de trem, cansativo (24h) para uma criança. Após 15 anos no poder, seu patrimônio era o herdado e “um terreno na Lagoa” (o qual Alzira não devia esquecer no imposto de renda). “A vida está em toda a parte difícil”, diz, em um bilhete.

 

É impossível ler sem contrastar com a política de hoje. Não é verdade que corrupção, visão estreita e espoliação das elites sem projeto para o país são constantes em nossa história. Em qual encruzilhada se pegou a estrada errada? Apenas uma provocação…

 

 

Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Pedro Cezar Dutra Fonseca (Professor da UFRGS, autor, entre outras obras, de VARGAS: o CAPITALISMO EM CONSTRUÇÃO e A ERA VARGAS) em 23/09/2018.