PAISAGENS IMAGINÁRIAS
EM LIVRO, POETA QUESTIONA AUSÊNCIA DE COMPOSITORES ERUDITOS CONTEMPORÂNEOS NO REPERTÓRIO ORQUESTRAL.
O poeta e ensaísta Augusto de Campos – tema da retrospectiva “Rever”, em cartaz no Sesc Pompeia – acaba de lançar “Música de Invenção 2”, que dá continuidade às reflexões sobre composição contemporânea (sobretudo erudita) publicadas em livro homônimo de 1998. O volume sai na mesma semana em que ocorreu a terceira Conferência Internacional MultiOrquestra, no Sesc Bom Retiro (maio).
Nesse encontro, promovido pelo Ministério da Cultura e pelo British Council sob o tema “Orquestra: Modo(s) de Usar”, a mesa mais candente discutiu a programação dos repertórios sinfônicos. Nela, o crítico João Marcos Coelho abordou o eterno dilema entre atender à expectativa do público – em geral conservador, principalmente no Brasil – ou propor peças contemporâneas, ousando contrariar essa expectativa com risco de ver cair uma audiência que seria a contrapartida de financiamentos públicos e leis de incentivo cultural (numa clara distorção mercadológica e da finalidade desses incentivos).
Coincidentemente, os ensaios de Augusto de Campos são atravessados por essa questão – seja nas análises do “desmesurado” Stockhausen, seja nas entrelinhas de um texto que trata do “músico-poeta” provençal Guillaume de Machaut (século 14), revalorizado por “modernos radicais como Varèse, Boulez, Ligeti”.
Em “Cruzadas, Cruzamentos e Encruzilhadas”, em meio a surpreendentes aproximações de Gerswhin e Schoenberg, ele lamenta o pressuposto das instituições culturais brasileiras de que a plateia seria “deficiente artístico-auditiva, inabilitada-crônica para escutar peças produzidas há quase um século”, ironizando o fato de um filme para público infantil, como “Fantasia” (1940), de Walt Disney, já incluir em sua trilha sonora a estrepitosa “Sagração de Primavera” (1913), de Stravinsky.
Apaixonado por jazz e pelo repertório pop inventivo, o autor de “Balanço da Bossa” não ignora a distinção de registros: “Mais intuitiva e instintiva, a música popular nos leva do corpo à vida, à vivência, aos afetos. A erudita nos eleva a outras paisagens imaginárias, que merecemos vislumbrar: tem algo a ver com o aquém ou além-vida”.
E os ensaios sobre a norte-americana Ruth Crawford, a germano-americana Johanna Beyer, a cubana (e negra) Tania Léon e a finlandesa Kaija Saariaho – na linhagem da genial russa Galina Ustvólskaia – têm por efeito desmentir a queixa (muito presente na Conferência MultiOrquestra) de que na cena erudita não há nem mulheres nem afrodescendentes.
Em vez de justificar a pouca ousadia alegando falta de formação do público (e de seus próprios músicos) ou de inclusão social – que não são tarefa precípua do meio musical, mas do Estado –, gestores de orquestras e instituições deveriam fazer de “Música de Invenção 2” seu manual de guerrilha.
LIVRO: MÚSICA DE INVENÇÃO 2 – Augusto de Campos, Editora Perspectiva, 2016, 144 páginas.
LIVRO: MÚSICA DE INVENÇÃO – Augusto de Campos, Editora Perspectiva, 1998, 280 páginas – Esgotado, mas disponível em sebos, volume inclui textos sobre compositores vanguardistas como Satie, Webern, Cage e Varèse.
Fonte: Revista Folha de S.Paulo/Manuel da Costa Pinto em 21 de maio de 2016.