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João Gilberto: Inventor da Bossa Nova
João Gilberto: Inventor da Bossa Nova

UM CHAMADO JOÃO

 

Criador da BOSSA NOVA morreu no sábado (6 de julho), aos 88 anos, deixando uma obra e um legado que atravessam a paisagem da música brasileira

 

A morte do cantor baiano João Gilberto, aos 88 anos, ocorrida no sábado, não é apenas a morte de um artista, é um ponto final na história do protagonista por excelência da música brasileira em mais de meio século. Ícone da bossa nova, inventor de uma maneira de cantar e tocar violão, influenciador de gerações, desbravador de caminhos para toda a melhor MPB que o sucedeu. Coisas como essas já foram escritas sobre João Gilberto ao longo do fim de semana para dar uma dimensão da grandeza do artista, uma tarefa algo inglória e fadada desde o início à incompletude, já que a maior parte do que se escreveu sobre a MPB da segunda metade do século 20 em diante é um capítulo disfarçado da biografia de João Gilberto.

 

João nasceu em Juazeiro, na Bahia, em 1931. Estreou em disco em 1959, com CHEGA DE SAUDADE, que, junto aos álbuns seguintes, O AMOR, O SORRISO E A FLOR (1960) e JOÃO GILBERTO (1961), ajudaram a criar, popularizar e internacionalizar a bossa nova.

 

O impacto de seu modo ciciante de cantar (em contraposição aos cantores de peito aberto como Francisco Alves, Orlando Silva ou Vicente Celestino, que dominaram a pregressa grande Era do Rádio) foi tal que praticamente tudo se reorganizou à sua volta. A maioria seguiu seus passos (como Caetano, Gil, Roberto Menescal e a torcida do Flamengo) enquanto muita coisa se definiu em oposição a ele (como o rock pioneiro de Raul Seixas).

 

Ao recordar, no livro de memórias NOITES TROPICAIS, a descoberta de João Gilberto pela sua geração na juventude, Nelson Motta fez um elogio entusiasmado (como quase todos os elogios feitos a João Gilberto ao longo dos anos): “A bossa nova era a trilha sonora que nos faltava, que nos diferenciaria dos ‘quadrados’ e dos antigos, dos românticos e melodramáticos, dos grandiloquentes e dos primitivos, dos nacionalistas e regionalistas, dos americanos. Tínhamos uma música que imaginávamos só para nós. João Gilberto era nosso pastor e nada nos faltaria”.

 

Ruy Castro, em CHEGA DE SAUDADE, o livro mais próximo de uma “biografia autorizada” que já se teve de João Gilberto, também relata o impacto que a descoberta de João Gilberto teve para parte da juventude nacional: “Na época não se tinha consciência disso, mas depois se saberia que nenhum outro disco brasileiro iria despertar em tantos jovens a vontade de cantar, compor ou tocar um instrumento.

 

É uma afirmação que já foi corroborada por vários artistas da MPB, entre eles Gilberto Gil e Caetano Veloso – Caetano conta, em seu VERDADE TROPICAL, que, quando estudante ginasiano em Santo Amaro da Purificação, fazia parte de um pequeno “culto a João Gilberto” se reunia em um boteco chamado Bar do Budu:

 

“Budu (o dono do bar) gostar de João Gilberto era apenas o primeiro sinal de que eu, Chico Motta, Dasinho e Bethânia não estávamos sós no entusiasmo da nossa descoberta”, relembra Caetano.

 

 

ÚLTIMOS ANOS FORAM DE RECLUSÃO E PROBLEMAS

 

o FIM DE SUA VIDA TEVE NOTAS TRISTES. Perfeccionista a ponto de sofrer devido à acústica deficiente de um espaço de shows, ele encerrou as turnês ao vivo em 2008, e, em seus últimos anos, viveu com problemas financeiros e teve de lidar com um longo processo contra a gravadora Universal Music, acusada de esvaziar o patrimônio da EMI justamente para não lhe pagar os devidos créditos. Em março deste ano, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) confirmou a vitória do músico em segunda instância.

 

Em sua etapa final, João havia sido interditado a pedido da própria filha, a também cantora Bebel, 52 anos, que voltou ao Rio depois de 26 anos em Nova York. A decisão provocou uma discordância pública entre Bebel e seu irmão João Marcelo.

 

Tumultos pessoais que não apagam o legado do artista: um personagem que marcou de tal modo a paisagem musical brasileira que é impossível imaginá-la sem ele. Cada novo mergulho na história da MPB atesta a sua influência, como um longo veio do qual seis décadas de músicos, aqui e lá fora, foram retirando preciosidades.

 

Fonte: Jornal Zero Hora/Segundo Caderno/Carlos André Moreira (carlos.moreira@zerohora.com.br) em 08/07/19

 

 

O LEGADO DE UM DIVISOR DE ÁGUAS

 

Críticos e especialistas definem a importância de João Gilberto e o legado de sua originalidade para a MPB

 

Nos últimos anos de vida, João Gilberto vinha frequentando os jornais por atritos com gravadora e boatos familiares. Há mais de uma década longe dos palcos, poucas vezes era lembrado que que o alçou ao posto de um dos artistas mais respeitados do Brasil: sua música.

 

Morto neste sábado (6 de julho), aos 88 anos, ele foi responsável por levar a música brasileira para o mundo. É o que afirma o crítico Zuza Homem de Mello:

- Antes de João Gilberto, a música popular brasileira era vagamente conhecida e, quando executada, em gravações de TICO TICO NO FUBÁ e AQUARELA DO BRASIL, soava mais como uma rumba do que como um samba. João Gilberto modificou e fixou nossa música com ritmo e melodia de tal forma que pudesse ser executada por músicos de qualquer lugar do mundo. Foi um divisor de águas.

 

O guitarrista e professor Nelson Faria, que aprendeu os primeiros acordes imitando o músico baiano, faz coro:

- João Gilberto foi quem conseguiu sintetizar o samba de um modo que o mundo inteiro pudesse entender. Essa síntese é a batida da bossa nova.

 

O crítico Celso Loureiro Chaves concorda que o músico é um divisor de águas na cultura musical brasileira, mas alerta que o reconhecimento internacional, pelo qual João muitas vezes é lembrado, deve ser secundário:

- Nós, brasileiros, temos essa necessidade de validação do Exterior. Mas o que está faltando é o reconhecimento nacional.

 

 

CANTOR TRANSFORMOU O CENÁRIO NACIONAL

 

Foi em 1958 que João Gilberto deu início a uma transformação na música brasileira, com a gravação de CHEGA DE SAUDADE, samba de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. É o primeiro registro de um gênero que mais tarde ganharia o rótulo de bossa nova. Para Loureiro Chaves, três elementos distinguem a originalidade do músico: a maneira de cantar, o tratamento de harmonia e o ritmo. O crítico refuta a tese, comumente difundida, de que foi o avanço tecnológico dos microfones que permitiu o canto suave, sem impostação, pelo qual o baiano é identificado:

- Não há uma inovação de meios de gravação que tenha possibilitado esse canto. João Gilberto gravou com os mesmos meios que Vicente Celestino gravava, por exemplo. Ele não é filho do microfone. De quem esse canto é filho? Para ser sincero, nunca descobri. Quem chegou mais próximo disso antes dele foi Lucio Alves (12927-1993). É a única genealogia mais próxima que identifico.

 

Para Loureiro Chaves, João Gilberto conseguiu concentrar conhecimentos de harmonia e ritmo da música brasileira e condensá-los em sua voz e seu violão:

- A música brasileira, principalmente de concerto, sempre teve aspectos de harmonia muito fortes. Isso foi desprezado muitas vezes em função de coisas consideradas mais brasileiras, reconhecendo a harmonia como uma coisa mais europeia. Mas a harmonia estava muito desenvolvida aqui.

 

Zuza Homem de Mello também aponta que João Gilberto serviu como elo entre ícones da MPB. A admiração comum pelo baiano serviu e ainda serve como um fator de identificação entre músicos de diferentes formações e gerações.

- Muitos devem a ele o início de suas carreiras. Entre outros, estão nomes como Chico Buarque, Milton nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Ivan Lins. Ou seja, ele impulsionou a nata da música brasileira – afirma Zuza.

 

MÚSICO TINHA LIGAÇÃO AFETIVA COM PORTO ALEGRE

 

Em 1955, João Gilberto já havia lançado um primeiro disco, no qual emulava seu ídolo Orlando Silva, completamente ignorado, e havia queimado muitas pontes no Rio com algumas de suas sem sempre compreendidas excentricidades. Sem dinheiro e com poucos amigos, foi convencido pelo seu amigo gaúcho Luís Telles, do grupo Quitandinha Serenaders, a mudar de ares e passar um tempo em Porto Alegre. Foi o início de uma espécie de “período sabático” de dois anos do qual João Gilberto emergiu reinventado, assumindo a batida e o modo de cantar que mudariam tudo em CHEGA DE SAUDADE (1958).

 

De janeiro a agosto de 1955, João morou na capital gaúcha, hospedado às expensas do amigo Telles no Hotel Majestic (hoje a sede da Casa de Cultura Mario Quintana). Melancólico pela solidão experimentada no Rio, encontrou um ambiente afetuoso na cidade, frequentando a Confeitaria Central, no antigo Largo dos Medeiros, no Mercado Público. Também se tornou habitué do Clube da Chave, casa noturna de propriedade do compositor Ovídio Chaves, na Rua Castro Alves.

 

Depois da passagem pelo Estado, João ainda daria um giro de um ano e meio por lugares como Diamantina, Salvador e sua Juazeiro natal, antes de voltar ao Rio.

 

O breve período em Porto Alegre não foi apenas uma nota biográfica de algumas páginas em livros como CHEGA DE SAUDADE, de Ruy Castro. Foi referido com carinho pelo próprio músico em passagens pela cidade. No show gratuito que ele realizou no Auditório Araújo Vianna, em 1996, João devaneou entre uma canção e outra:

- Porto Alegre... saudades... amigos...

 

Em sua última apresentação na cidade, em 2001, no Teatro do Sesi, João, então com 70 anos e em um humor solar surpreendente para um cantor com fama de irascível em suas apresentações ao vivo, fez declarações ainda mais explícitas de afeto. Lembrou de Boneca Regina, professora que o acolheu como filho durante sua estadia; de Luis Telles, patrono de sua visita; de Armando Albuquerque, compositor e professor com quem passava horas conversando; de Mario Quintana. Ao fim da apresentação histórica, improvisou versos para a melodia de SAMBA DA BÊNÇÃO: “Foi linda a vida por causa de vocês / Viva o Rio Grande do Sul que eu adoro”.

 

ARTISTAS LAMENTARAM A MORTE DO CANTOR NAS REDES SOCIAIS

 

Após o anúncio da morte de João Gilberto, feito por seu filho João Marcelo nas redes sociais, a internet foi tomada por uma profusão de manifestações de apreço de artistas em tributo ao criador da bossa nova. As causas da morte do artista ainda são desconhecidas. O seu velório será realizado hoje no foyer do Teatro Municipal do Rio.

 

“João me ensinou tudo. Sou cantora por causa dele”, disse Gal Costa em nota divulgada por seu produtor. Gal lembrou que o disco CHEGA DE SAUDADE, álbum de estreia lançado pelo cantor em 1959, foi o primeiro que comprou em sua vida.

 

“João mudou para sempre a música do mundo. Ele ensinou delicadeza ao Brasil, trouxe a modernidade. É uma perda irreparável. Eu, pessoalmente, sentirei saudade do homem que teve uma influência decisiva no meu canto”, afirmou Gal, ao publicar uma foto com João em sua conta oficial no Instagram.

 

Roberto Menescal, colega de geração e um dos grandes impulsionadores da bossa nova, salientou o quanto João mudou o panorama da MPB.

- Numa época em que tudo era cantado com força, com seu modo de cantar para dentro João abriu possibilidades para muitos que só seriam compositores. Chico Buarque e Caetano Veloso só puderam ser cantores por causa dele.

 

De acordo com Menescal, a última vez em que esteve com João Gilberto foi em |Nova York no ano de 1962:

- João estava sempre escondido do mundo.

 

O cantor e compositor Carlos Lyra disse ter sido pego de surpresa pela notícia.

- Sabia que ele não estava bem, mas não tinha noção da gravidade. – disse Lyra:

- João foi quem deu a forma à bossa nova e é seu interprete maior. Sua importância é inquestionável. Espero que sua obra seja mantida e que as novas gerações tenham pleno acesso a ela. Ele faz parte da memória cultural desse país – disse Lyra.

 

CAETANO E GIL FIZERAM ELEGIAS EM VÍDEO

 

Caetano Veloso, em vídeo veiculado pelo canal de notícias GloboNews, classificou João Gilberto como o maior artista brasileiro de todos:

- Ele, no momento exato, preciso, da minha vida, apareceu dando o sentido mais profundo, a percepção das artes em qualquer estágio. Nem sei o que dizer do fato de que ele deixou de existir como pessoa física – afirmou.

 

No Instagram, com a legenda “para João, a música, a poesia e o amor”, Gilberto Gil publicou um vídeo homenageando-o:

- Aparece a cada cem anos um, e a cada 25 (anos) um aprendiz. Este é o mote básico da canção. Esse um, basicamente, é o João. E a plêiade de discípulos que ele formou e reuniu em torno dele ao longo desse meio século de vigência do gênero extraordinário que é João Gilberto.

 

O músico Lobão classificou João Gilberto como um cantor de plenos pulmões e um grande instrumentista de perfeição como poucos:

- Eu fui abatido numa tristeza por essa perda de uma pessoa quase que silenciosa que é o João e que, na sua inocência de um gênio, foi usado por muitas vertentes e muitas correntes. O Brasil e o mundo choram por João.

 

Par Jorge Vercillo, a música de João Gilberto extravasou as fronteiras da bossa nova e teve sua influência notada em vários gêneros produzidos no Brasil: pop, lounge e até hip-hop.

- João juntou em seu violão o jazz de Cole Porter com as melodias de Tom Jobim, ajudando a criar esse novo padrão harmônico-melódico dissonante que tantos de nós seguimos. A música de João Gilberto não termina na bossa nova – declarou Vercillo.

 

Apesar do debilitado estado de saúde do cantor ter vindo a público há algum tempo, o bandolinista Hamilton de Holanda afirmou que João é o tipo de pessoa que não se espera que vá morrer.

- Tive a sorte de conhecer sua música através de meu pai e aprender muito com sua harmonia, sua batida, sua simplicidade. O que ele fez pelo país o eternizou – disse Holanda.

 

“Todo e total respeito e reverência a essa entidade da música brasileira”, escreveu Maria Bethânia ao postar nas redes sociais uma foto ao lado do ídolo.

 

A última foto foi postada este mês

A derradeira imagem de João Gilberto foi publicada no início deste mês, na página da neta do cantor, Sofia. A menina tem apenas três anos, mas conta com uma página no Facebook administrada pela família, onde foram publicados registros raríssimos da intimidade recente do recluso cantor, na maior parte cenas domésticas do avô com sua neta. Na última fotografia, tornada pública no dia 3 de julho, João Gilberto aparecia trajando um terno azul e de mãos dadas com Maria do Céu Harris, de 55 anos. Moçambicana, Maria do Céu tinha 20 anos e participava de um concurso de beleza em Lisboa quando conheceu João Gilberto, em 1984. A jovem e o cantor, então com 53 anos, iniciaram um relacionamento, e pouco depois o músico a convidou para viver no Brasil.

 

Fonte: Jornal ZH/Segundo Caderno/Alexandre Lucchese (alexandre.lucchese@zerohora.com.br) em 08/07/19

 

JOÃO

 

Talvez sejam de Ruy Castro, o biógrafo da bossa nova, as frases mais realistas sobre João Gilberto e o Brasil: “No Brasil, dedicamo-nos a cobrá-lo – por faltar a compromissos mal combinados, por não querer que o ar-condicionado desafinasse seu violão, por pedir `plateia que o deixasse cantar baixinho. Enquanto o criticávamos por faltar a shows, deixamos de ouvir o seu legado. Está tudo lá – o homem por detrás daquelas maravilhas nem precisava aparecer”.

 

É bem isso. Preocupados em reconhecer que João Gilberto identifica o Brasil para os de lá fora (que bom, que ótimo), transformamos aqui dentro João numa caricatura, desprezando que é aqui a sua importância, que é aqui tudo o que fez e foi, é aqui a sua música brasileira que se fez brasilidade de ontem e de sempre. João foi a voz dos anos 1960 – até de um pouco antes. Seu violão inconfundível se confunde com Pelé, Brasília, um daqueles tempos em que fomos modernos.

 

Cheguei tarde na bossa nova. Minha geração é a do show OPINIÃO, com Bethânia (sim, Bethânia!), Zé Kéti e João do Valle, é a dos festivais da Record. A bossa nova já tinha passado, mas João Gilberto permanecia como ícone. Fui encontra-lo de fato no “álbum branco” de 1973 e ainda mais no AMOROSO de 1977, mesmo com os arranjos de Claus Ogerman que afundam a voz de João num pântano de cordas distante da sutileza dos arranjos de Tom Jobim. Ouvi CHEGA DE SAUDADE bem mais tarde, como se eu ouvisse João de trás para a frente, encontrando nele os anos 1950 de que lembro pouco.

 

Falando em anos 1950: quando João Gilberto esteve aqui em Porto Alegre naqueles ambos de formação, um dos seus interlocutores foi meu mestre Armando Albuquerque. Devia ser fascinante o diálogo desses dois homens silenciosos, mas tão geniais. Armando foi o gênio da múysica de concerto, com suas individualidades e modernismos. João também foi individual, moderno e gênio. Como reconhecê-lo? É simples. Aí vão três caminhos: na mágica da voz sem impostação, no violão das divisões rítmicas imprevisíveis, na harmonia cheia de espertezas.

 

Sim, João Gilberto foi sempre o mesmo e foi novo sempre.

 

Fonte: Jornal ZH/Segundo Caderno/Celso Loureiro Chaves (cglchave@portoweb.com.br) em 08/07/19