EM NOME DA LEI
“Orestes”, filme que mistura drama e documentário, faz aproximação entre obra trágica grega e a ainda não cauterizada ferida da ditadura no Brasil.
Orestes: Documentário – De Rodrigo Siqueira – Brasil, 2015, 93min. No filme, um grupo de pessoas interconectadas por episódios de violência patrocinados pelo Estado, à época da ditadura e nos dias de hoje, debatem a justiça no Brasil a partir de uma reflexão sobre a trilogia trágica grega ORÉSTIA, de Ésquilo.
Verifico minha correspondência eletrônica. Carlos André me convida como helenista a escrever sobre ORESTES, filme de Rodrigo Siqueira. O convite me povoa a cabeça de cenas de Ésquilo, o tragedista que inventou Orestes. Vejo o guerreiro avançar de espada contra a própria mãe. A agressão não é gratuita, Clitemnestra havia sujado aos mãos com o sangue de seu próprio esposo, Agamênon, pai de Orestes. A ordem divina mandava o filho punir o assassino do pai. Orestes agiu dentro da lei, lei mítica, mas lei. E se o infrator fosse a própria mãe? Os tragedistas costumavam adensar enredos. O filho estava obrigado a cumprir a ordem divina, sentimentos não debilitavam o dever. Desferido o golpe mortífero, o herói é atacado pelas Erínias, incumbidas de punir matricidas.
Atormentado, Orestes se refugia no templo de Apolo, divindade que lhe impôs a ordem de vingar a morte de Agamênon. Perplexo diante da fúria das implacáveis deusas da ira, Apolo resolve enviar o réu ao recém fundado tribunal que se reunia no Areópago. O júri que julgou Orestes foi presidido pela própria Atena, padroeira da democrática Atenas. As Erínias acusaram o réu. A defesa ficou a cargo de Apolo, sofista de argumentação capciosa. Os argumentos não apagam a incerteza dos jurados, cidadãos ponderados. Encerrado o debate, consulta-se a vontade dos que julgam. A dúvida foi expressa pelos votos, a opinião dos jurados dividiu-se em duas partes iguais. Palas Atena – valendo-se do voto de Minerva (nome romano da padroeira de Atenas) – absolveu Orestes.
O conflito do guarda que anunciou o retorno do vitorioso Agamênon, a contradição de tradições míticas, o comportamento do tribunal ateniense e a sonoridade dos versos entoados pelo coro conferem a Ésquilo lugar destacado na dramaturgia mundial.
Enfrento uma tarde fria e chuvosa para assistir ao filme na sala acolhedora do CineBancários. Acompanho na tela as evoluções de um corvo entre prédios de uma megalópole, São Paulo. Em lugar do movimento de multidões, edifícios silenciosos encenam o voo negro de uma ave de mais presságios. Aparece, num prédio destinado outrora à tortura, um grupo reunido ao acaso, engalfinhado em discussão apaixonada sobre anistia, delinquentes, drogados, polícia, agressões, assassinatos e pena de morte. Vozes ofendidas e contrárias lembram a fala de um coro trágico enlouquecido. A prosa cotidiana tomou o lugar dos ritmos solenes da poesia antiga.
Vem o depoimento de testemunhas do regime militar, golpistas se apresentam como defensores da democracia contra rebeldes que lutavam armados para instaurar uma ditadura popular. Confrontos evocam torturas em celas secretas, prisões e execuções sem processo. Ao contrário da tragédia de Ésquilo, o filme de Siqueira destaca o que se passa à margem da lei.
A sequência destaca um fictício Orestes brasileiro, um nordestino acusado de matar o pai, um infiltrado no movimento guerrilheiro, que se envolveu com uma guerrilheira e a engravidou. A militante, depois de gerar Orestes, teria sido torturada e morta pelo pai de Orestes, um menino. Adulto, Orestes aparece inesperadamente, enfrenta o pai em luta corporal e, enfurecido, o mata. Sabe-se desses fatos através dos discursos do promotor e do advogado de defesa no júri instaurado para julgar o crime. O promotor acusa Orestes de transgredir a lei, o defensor fundamenta-se nos sentimentos que teriam movido o parricida.
Comparem os dois Orestes, o antigo e o contemporâneo. O Orestes de Ésquilo é levado ao tribunal, invenção ateniense, como executor da lei. O Orestes brasileiro agride e executa o pai, afrontando a lei. Para minorar a culpa, a defesa romanceia o passado do parricida. A mãe teria sido torturada e morta aos olhos do menino, espectador invisível da violência contra a mãe. Desde o tribunal de Atenas, os oradores mostram-se mais interessados na vitória da tese defendida do que na fidelidade aos fatos. Sócrates, como réu, argumenta que o tribunal não é o lugar para apurar a verdade.
Siqueira não revela a sentença, transforma os espectadores em jurados. Lembro a palavra de Sócrates, interlocutor da REPÚBLICA, diálogo em que Platão expõe os fundamentos de uma constituição justa. Como viver com justiça – pergunta o filósofo – num Estado injusto? Siqueira nos chama à cena, a democracia é feita por pessoas que pensam e deliberam.
O Estado é abalado por muitos erros: não votar, eleger irresponsavelmente, sonegar impostos, antepor interesses privados a deveres públicos, praticar salários injustos, deteriorar redes escolares e sistemas de saúde. Prendo-me em minha própria casa para não ser assaltado ou morto nas ruas de um Estado omisso. A imprensa informa que bombardeiros atacam hospitais e matam civis, radicais divulgam a imagem da degola de capturados. Inimigos são humilhados e torturados em presídios de potências que se batem pelo respeito aos direitos humanos. Nações são agredidas por motivos forjados sem que os agressores sejam sequer repreendidos. Ditaduras truculentas florescem.
Orestes é símbolo de muitos crimes. É hora de refletir e votar!
Fonte: ZeroHora/Donaldo Schüler (Poeta, Professor e tradutor, entre outros, de “Antígona”, de Sófocles e “Os Sete Contra Tebas”, de Ésquilo) 11/10/2015