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Entrevista com Gunther Axt
Entrevista com Gunther Axt

COM A PALAVRA GUNTER AXT

 

Historiador, 48 anos. Trabalhou na Assembleia Legislativa, foi um dos curadores do Fronteiras do Pensamento e, hoje, vive em Florianópolis. Tem dezenas de livros e artigos publicados principalmente sobre História do Brasil.

 

AS CABEÇAS CORTADAS SÃO UMA IDEIA DE JUSTIÇA”.

 

O gaúcho Gunter Axt é uma usina de interpretar histórias – e a História. Entre colaborações e obras solo, publicou cem livros ou capítulos de livros, incluindo memoriais do Judiciário e do Ministério Público e volumes sobre contextos históricos como a chegada da modernidade ao Rio grande do Sul e sobre personas fascinantes e tão diversas como o megaempresário A.J.Renner e o caudilho republicano Julio de Castilhos.

 

Com Guerras Gaúchas, ganhou o Prêmio Açorianos em 2009. Seu estilo mais empreendedor e menos acadêmico do que grande parte dos colegas tornou-o conhecido em ambientes além da academia, unindo versatilidade e erudição. Em um de seus ensaios mais recentes, a ser publicado em uma revista especializada, aborda a banalização e espetacularização da violência, com destaque para as degolas nos presídios brasileiros. Outro artigo ele dedicou à Operação Lava-jato – e um personagem em especial, Luiz Inácio Lula da Silva, também assunto desta entrevista.

 

 

Entre 2015 e 2016, o número de esquartejamentos e chacinas na grande Porto Alegre aumentou 257%. O senhor estudou essa espetacularização da crueldade como forma de transmitir um recado moral. O que descobriu?

As transformações na sociedade acontecem em ritmos. Podemos ter evoluído para uma sociedade ultrassensível em certos aspectos, mas, por outro lado, subsistem mentalidades ancestrais, rústicas. Instaurou-se o Direito positivo, mas, nas profundezas dos sentires coletivos, persistem ideias de justiça que pertencem a um marco cultural consuetudinário, que já se diluiu nas superfícies. No oeste de Santa Catarina, ainda nos anos 1980, era quase impossível para um promotor lograr em Tribunal do Júri a condenação de um réu confesso do assassinato da esposa supostamente adúltera, pois ele enfrentava uma ideia de justiça bíblica, baseada na noção de honra: o ofendido era o marido traído, não a esposa morta. As pessoas veem essas cabeças cortadas hoje em dia e pensam que estamos na barbárie. Mas é uma ideia de justiça, antiga, que estava latente nas mentalidades, e que de repente aflora. Os linchadores de hoje reproduzem o padrão das Ordenações Filipinas, cujo Livro V era farto em penas espetaculosas. A sociedade e o Estado, então, puniam o criminoso vingando-se no corpo dele e na sua memória. Era um jeito de lançar um recado macabro aos vivos. O Estado promoveu isso por séculos. O Direito liberal é recente.

 

 

O senhor salienta que o criminólogo norte-americano Lonnie Athens diagnosticou o processo de “violentização” dos jovens, uma socialização às avessas. Então a violência não é desdobramento da pobreza ou de heranças genéticas?

Ao entrevistar condenados à pena capital, Athens encontrou um padrão de violências sofridas na infância e na adolescência. E formulou o conceito de “violentização”, dinâmica segundo a qual alguém mais velho introduz pré-adolescentes no crime. As experiências que tornam pessoas violentas ocorrem gradualmente. No Brasil, Marcos Rolim trabalha com metodologia de Athens, com conclusões semelhantes. Essa violência precisa da combinação de condições culturais e psicológicas para emergir. No Brasil, ao invés de trabalharmos para desarmar essa bomba, o fazemos para ampliá-la.

 

 

Em Porto Alegre, parte da monstruosidade nas ruas é promovida pelos “bondes do terror”, grupos de jovens cooptados pelo tráfico, nos quais importa menos matar ou morrer do que ser reconhecido como “bandidão”.

No Brasil, o Estado se tornou parceiro do processo de violentização. As imagens de decapitações e esquartejamentos indicam que as facções que se enfrentam nas ruas dominam as cadeias. O Estado não procede assim apenas por incompetência, mas porque a sociedade quer isso. O Estado está executando tacitamente um mandato da sociedade que deriva da ideia atávica de justiça punitivista, lastreada na Santa Inquisição e nas Ordenações Filipinas, segundo a qual, se bandido bom é bandido morto, então que eles se matem entre eles.

 

 

Os esquartejamentos de Porto Alegre lembram a tática do Estado Islâmico (EI), de mostrar em vídeo decapitações de reféns. Por que essa ideologia extremista e sanguinária ganhou espaço?

Na I Guerra Mundial, jovens alistaram-se voluntariamente como combatentes, aos borbotões. Buscavam libertar-se da aldeia, da família, viver aventuras. Para milhões, o tiro saiu pela culatra. Uma guerra que seria de movimento tornou-se estática em trincheiras pestilentas, provocando enorme mortandade. Foi um momento de inflexão, revelando que a modernidade conteve as válvulas de escape para as manifestações de masculinidade juvenil que existiam nos ritos de passagem das sociedades tradicionais. Hoje, o rito de passagem é o vestibular. Para a escritora Camille Paglia, parte do relativo sucesso do EI em cooptar adeptos se explica em função de uma crise de masculinidade. Segundo ela, o jihadismo venderia uma ideia de que, ali, homens podem ser homens e ter aventuras como costumavam ter.

 

 

O senhor acredita que, no Brasil, prende-se demais?

É o quarto país que mais prende no mundo. Cerca de 40% dos presos são provisórios ou preventivos. Menos de 10% do total de presos é envolvida com casos realmente violentos. E isso não está resolvendo. Nos últimos anos, a violência urbana só aumentou. De modo algum defendo que se trate bandidos com plumas. Acho, inclusive, que parte do discurso dos direitos humanos errou o tom, porque ficou caricato e não conseguiu explicar a perversidade desse círculo vicioso ao qual me refiro. Guerra, porém, não se ganha com bravata. É preciso começar a desidratar o inimigo. As receitas são conhecidas: melhor aparelhamento das polícias, promoção de operações de inteligência articulando instâncias e agentes de segurança, melhor fiscalização das nossas fronteiras, retomada do controle das prisões, a separação dos presos por grau de periculosidade, promoção de programas de educação e de trabalho dentro dos presídios, Justiça restaurativa e penas compensatórias.

 

 

O senso comum supõe que nunca tivemos tanta barbárie na história de Porto Alegre, concorda?

Na curta duração, tivemos de fato aumento palpável da violência. Há poucos anos, as pessoas ainda dormiam com portas e janelas abertas, as cercas eram baixas, as crianças iam sozinhas para a escola. Isso tende a piorar, porque o sistema está em colapso. Já em termos de longa duração, estamos vivendo uma época de expansão do espírito, de progresso tecnológico acelerado e de retração dos índices de violência. Basta assistir à série VIKINGS para entender como a barbárie já foi maior. Ou que tal os sacrifícios humanos realizados na antiga capital asteca? Os horrores das grandes guerras? E por aí vai. O próprio Estado espetacularizava a violência.

 

 

O Rio Grande do Sul teve sua revolução da degola, a guerra civil que opôs maragatos e Pica-Paus no fim do século 19. Em que medida a situação daquela época se parece com a situação atual?

A degola era a materialização de um ato de vingança. Não era aplicada indistintamente. Na sociedade baseada em princípios de honra, na qual o facão era um símbolo de virilidade, era um modo de humilhar o inimigo, deixando um recado macabro para os vivos. Estupradores, depois de degolados, eram deixados expostos em encruzilhadas, com as próprias genitálias enfiadas na boca. Um mimo da época era cortar e salgar as orelhas de um inimigo, carregando-as como souvenir. Fizeram isso com o Gumercindo saraiva, grande estancieiro e líder rebelde. Há pilhas de exemplos assim. Vejo um paralelo, sim, entre essas práticas e o tipo de justiçamento promovido hoje em dia.

 

 

A barbárie sempre esteve entre nós?

O General Souza Docca disse que a Revolução federalista era um capítulo tão condenável que não merecia ser estudado. E silenciou. Mas há um sistema de matança de presos que perpassa toda a nossa história, talvez se tornando ainda mais tenebroso na malfadada república, quando a pena de morte foi formalmente abolida. Entre 1993 e 2007, quase 10,5 mil pessoas desapareceram nas favelas do Rio, e 70% desses casos estariam relacionados à ação do tráfico ou das milícias. Mas o fato de 1,5 milhão de pessoas viver sob uma ditadura em pleno regime democrático não parece chamar a atenção. As pessoas só se abalam quando as balas riscam o asfalto. Então, quando veem aberração nas rebeliões de presos, eu vejo continuidade, mais do mesmo.

 

 

Em resposta à violência, o Congresso propõe endurecer as leis penais. Isso tem funcionado?

A tendência natural das pessoas quando expostas à desordem é clamar por um choque de ordem. Percebendo a falência do sistema de segurança pública, o Congresso é o bastião ao qual recorrem, o a exigência de um endurecimento das leis. As leis penais têm sido reformuladas ao sabor de acontecimentos impactantes, penas são tornadas mais severas e novos tipos são forjados. Adianta? Claro que não. A população de apenados aumenta, e o índice de reincidência é elevadíssimo: gira em torno de 70%. As pessoas vivem no século 21 com carros que dirigem sozinhos e smartphones inteligentes, mas muitas vezes pesamos como se estivessem no século 18. o próximo passo é, claro, assustadas, tornarem-se presa fácil para discursos moralistas e punitivistas ainda mais radicais.

 

 

Em um artigo intitulado As Prisões de Lula, o senhor resgata um episódio pouco conhecido: durante o regime militar, Lula virou réu por, supostamente, estimular que seringueiros do Acre matassem um fazendeiro considerado responsável pela morte de um sindicalista. O que houve?

No final do regime militar, entre 1981 e 1984, Lula, junto com outros companheiros, como Jacó Bittar e Chico Mendes, enfrentou um processo na Auditoria Militar de Manaus, por conta de um comício realizado em 1980 no Acre, depois do qual o suposto assassino do presidente do Sindicato dos Seringueiros de Brasileia foi atacado pela massa e morto. A audiência das testemunhas foi em 1981, e o julgamento, apenas em 1984. Foram ridiculamente acusados de incitação à luta armada e de apologia da vingança, porque o Lula disse que estava na hora da onça beber água. Ao invés de investigarem o conflito na floresta, as autoridades perseguiam suas lideranças e apoiadores. Típico dos tempos… Tanto é que acabaram absolvidos. O comandante militar da Amazônia, general Leônidas Pires Gonçalves, atestou, anos depois, que os generais jamais consideraram Lula um “subversivo” perigoso, mas sim um sindicalista intrasistêmico, ou seja, não comunista. Lula, com efeito, começou sua trajetória sindical disputando espaço com os comunistas. No início dos anos 1980, a criação do PT neutralizou Luiz Carlos Prestes, que voltava do exílio. Em 1989, Lula dividiu os votos da esquerda com Leonel Brizola. Os militares certamente consideravam Prestes e Brizola ameaças mais perigosas, porque ambos haviam se envolvido na luta armada e apregoavam a instalação de um sistema comunista, coisa que Lula rejeitava. Nos anos 1980, Lula desempenhou o importante papel de liderar a organização dessa nova esquerda, que o Prestes chamaria de burguesa e Leônidas Gonçalves de intrasistêmica.

 

 

Na época desse julgamento, Lula foi apoiado por notáveis. É possível comparar aquele momento com o atual?

Fafá de Belém e Dina Sfat estavam na plateia do julgamento de 1984, em Manaus. Num outro julgamento, em São Paulo, em 1981, Fernando Henrique Cardoso ocupava uma das primeiras filas, junto a muitos religiosos. Em 1980, o próprio papa João Paulo II, que visitava o Brasil num clima de comoção, recebeu Lula no Estádio do Morumbi. Tudo isso contribuiu para criar em torno dele, não sem méritos pessoais, uma aura de líder progressista e mártir da luta pela redemocratização. Já os processos atuais estão em outro cotexto. Primeiro, porque nossas instituições não são mais ditatoriais, mas democráticas. Segundo, porque Lula não está mais sendo acusado por seus ideais, mas por corrupção. Terceiro, porque Lula hoje está praticamente sozinho, com o que sobrou do PT. O arco de apoiadores que ele tinha se restringiu. De parecido fica a estratégia de bramir o carisma acumulado contra a Justiça e acusá-la de parcial. Mas, se essa acusação funcionava na ditadura, hoje tem menos eficácia.

 

 

Lula mudou ou o Brasil mudou? Ou ambos?

Dizem que o Lula se desviou. Ele prometia um compromisso com a ética, que acabou se frustrando, a julgar pelas investigações e sentenças recentes. Como liderança que emergiu no país durante o período da redemocratização, ajudou a desenhar o novo cenário institucional, mas continuou fazendo parte de uma velha política, que ainda tolerava a indistinção entre espaço público e privado, bem como conchavos pouco transparentes. O poder tem um componente corrosivo, que contamina na prática, grandes projetos e ideais. Não me sinto confortável diante do endeusamento ou da demonização de Lula. É importante começarmos a analisar o seu legado com mais critério.

 

 

O senhor mesmo tem se perguntado: para onde migrará o eleitorado da esquerda? O que substituirá Lula?

Historiadores não gostam de exercícios de futurologia, mas é possível identificar tendências. Creio que as eleições de 2018 serão pulverizadas como as de 1989, quando tivemos 22 candidatos. Como naquela oportunidade, é provável que a esquerda divida forças enquanto a direita escolha, no andar da carruagem, um candidato. O PT pode encolher, pois a imagem do partido ficou associada à desordem, tanto da economia quanto das ruas. O PT errou também ao nunca condenar a ditadura Chavez-Maduro: o pessoal fica com medo de que o Brasil se torne uma Venezuela nas mãos do partido. As pessoas querem ordem e progresso – não foi à toa que temer escolheu esse slogan. Mas outros partidos de esquerda podem crescer, como PPS, PDT e Rede, até porque o governo Temer se constituiu com pouca legitimidade e arrasta popularidade muito baixa. Creio que, nessas eleições o carisma jogará um papel importante, e que testará novamente a capacidade de Lula, mesmo se não for candidato, de transferi-lo, como fez com Dilma. Mas também abre terreno para arrivistas, como Bolsonaro. Enfim, dada a desconfiança das pessoas na classe política e nas instituições, há uma via aberta para outsiders. Além disso, as pessoas estão fartas da polarização acrimoniosa. Um discurso de centro,com apelo à concórdia, capaz de combinar liberalismo com justiça social, pode se dar bem.

 

 

E quanto à Operação Lava-Jato. O senhor é um crítico do que chama de exageros da Polícia Federal e do Ministério Público.

Ainda é cedo para consolidar uma análise. A Lava-Jato é resultado de uma combinação de fatores. Antes, houve o julgamento do Mensalão, que introduziu a teoria do domínio de fato entre nós. Depois, o STF decidiu que as penas deveriam começar a ser cumpridas em seguida à condenação em segunda instância. Sem isso, a execução das sentenças seria postergada, e o ímpeto em prol das delações premiadas não seria o mesmo. É certo que há também uma mudança de cultura jurídica, basta ver que boa parte das operações anteriores acabaram anuladas nos tribunais superiores. Há a coincidência de chegar a Curitiba um delegado que morara em Brasília e um juiz que trabalhara no caso Banestado. É importante ainda lembrar que, entre o Mensalão e a Lava-Jato, avançou a colaboração internacional em torno dos casos de corrupção. A realidade, hoje, é outra. Mas há questões que geram desconforto. Acho estranho quando juízes e promotores casam com as causas e temo que uma operação se torne uma espécie de vara autônoma, paralela. Juiz mandando bilhetinho para manifestantes de rua é um ponto fora da curva, assim como é constrangedora a rasgação de seda de uma turma de um tribunal federal para um juiz de primeira instância. Pior foi o presidente corte elogiando uma sentença de primeiro grau como impecável, antes mesmo de a turma analisá-la. Não cai bem, além disso, a esposa de juiz fazer trocadilhos em redes sociais. Assim como é estranho juiz que assina a sentença em outro foro para aparecer nas manchetes, logo depois de ter sido medalhado por um tribunal superior. O personalismo não tem lugar na Justiça Comum, nos Estados, onde está a maior parte das causas julgadas. Isso pode acabar mal.

 

Fonte Zero Hora/Caderno DOC/Humberto Trezzi (humberto.trezzi@zerohora.com.br) em 04/03/2018