LEANDRO KARNAL
O HOMEM QUE DORME SÓ 4 HORAS
O relógio é fundamental na vida de Leandro Karnal, 54 anos, historiador gaúcho que virou um popstar do pensamento nacional. Com horário fixo para dormir e acordar, ocupa grande parte de sua agenda com aulas, palestras, vídeos, colunas de jornal e entrevistas.
Assim como usa ideias do romancista e ensaísta Elias Canetti, do filósofo José Ortega Y Gasset e do teórico da comunicação Marshall McLuhan para tentar explicar sua popularidade, Leandro Karnal pode lembrar de uma cena da comédia Corra Que a Polícia Vem Aí (1988) e usá-la como referência no instante seguinte. É incessante a cadeia de associações produzidas pela mente do professor, escondida sob a aparadíssima careca que se tornou sua marca registrada. E é dela (a mente, não a careca) que o gaúcho de São Leopoldo se vale para organizar suas palestras, que se tornaram hits nas redes sociais e em teatros por todo o Brasil.
Em 8 de junho, Karnal, 54 anos, apresentou em Porto Alegre a conferência A Vida que Vale a Pena Ser Vivida. Falou para cerca de 1,5 mil pessoas, no Teatro do Sesi, sobre a busca pela felicidade, as angústias da vida contemporânea e a relação das pessoas com o tempo. Durante uma hora e meia, à frente de um telão que projetava imagens de uma apresentação em PowerPoint, pincelou com bom humor temas que aborda em seus livros – nesse período, foi filmado por dezenas de smartphones e interrompido por aplausos oito vezes, sete delas depois de uma piada e uma ao final da palestra, quando ouviu 26 segudos de palmas. Com o público de pé;
Na manhã seguinte, uma gravação de TV na Band o levaria ao Rio.
- Durmo cada noite em um lugar – diz Karnal, para logo em seguida fazer uma brincadeira com fundo de verdade, outra coisa que faz com certa frequência: - Mas a fama me agrada, principalmente porque atende ao fenômeno mais universal da espécie humana, que se chama vaidade.
De fato, a vida de Karnal não é a típica de um professor universitário (ele dá aulas na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp). Sua agenda inclui uma coluna semanal e um blog no jornal O Estado de S. Paulo, entradas ao vivo duas vezes por semana na rádio BandNews e o quadro diário Careca de Saber, na BandNewsTV. Está frequentemente em aeroportos e posando para fotos com desconhecidos. É uma rotina que mais parece com a de um popstar da música sertaneja do que a de um historiador especializado no desenvolvimento das nações.
- Converso muito com pessoas que vivem isso há mais tempo. Gosto de falar com atores da Globo, por exemplo – revela. - Segundo eles, é inevitável criar uma persona pública para lidar com a fama.
O professor estima que ficou famoso há mais ou menos três anos. Lembra de, repentinamente, observar o crescimento exponencial da popularidade de seus vídeos, a invasão de suas redes sociais por milhares de pessoas que ele nunca havia visto na vida e a demanda quase diária por entrevistas. O cenário já era um Brasil em crise existencial, sob a sombra da Operação Lava-Jato e polarizado após as eleições de 2014. Até ali, radicado em São Paulo havia três décadas, Karnal circulava basicamente em ambientes acadêmicos e era “alguém” em circuítos específicos, principalmente por conta de livros como HISTÓRIA DOS ESTADOS UNIDOS: DAS ORIGENS AO SÉCULO XXI (2007).
- Notei que havia algo de diferente quando as pessoas começaram a dar muito valor às fotos que tiravam comigo – brinca, antes de aprofundar:
- A espetacularização da vida e o ingresso das massas no sistema de consumo cultural, conceitos trabalhados por Elias Canetti em MASSA E PODER, Ortega y Gasset em REBELIÃO DAS MASSAS, começaram a ficar cada vez mais evidentes. Não só professores se tornaram populares, o que é notável, mas também pessoas sem grande bagagem de erudição, como youtubers, que têm 3 milhões de seguidores porque possuem grande capacidade de comunicação. McLuhan, que morreu antes de tudo isso, dizia que o meio era a mensagem. Hoje, o meio certamente é a própria mensagem. Acima de tudo, o surgimento da internet e a popularização das redes sociais fizeram com que ideias que eram restritas a um grupo atingissem mais pessoas.
Atualmente, um milhão de pessoas curtem Leandro Karnal no Facebook – há um ano, eram 400 mil. No YouTube, seu vídeo de maior popularidade chama-se “Minha felicidade depende de mim”, de 2016, com 1,6 milhão de visualizaações (suas recentes entrevistas ao Programa do Jô e ao Roda Viva também ultrapassam o milhão). Seu livro PECAR E PERDOAR: DEUS E O HOMEM NA HISTÓRIA, de 2024, acumula nove semanas consecutivas na lista dos mais vendidos da revista Veja. FELICIDADE OU MORTE, escrito com Clóvis de Barros Filho, terminou 2016 na sexta posição da mesma lista. O gaúcho faz parte do grupo de “filósofos pop”, que abrange nomes como Mário Sérgio Cortella, Marcia Tiburi, Luiz Felipe Pondé e Barros Filho. A semelhança entre eles: todos tentam refletir sobre questões da vida contemporânea e discutir aspectos específicos da política nacional com base em referências bibliográficas, linhas de pensamento históricas e argumentos de lados distintos.
Se as redes sociais explicam o fenômeno sob o ponto de vista do meio e do contexto social, Karnal também procura pensá-lo sob a ótica da mensagem:
- Eu e muitas pessoas, até mais do que eu, temos a capacidade comunicativa de transformar coisas complexas em coisas simples e fazer as pessoas pensarem coisas das quais elas não tinham se dado conta – diz, citando Cortella e Barros Filho, “todos ligados a universidades, com títulos de doutor, formação no Exterior e livros publicados”. - temos as redes, a mensagem e um momento específico no Brasil, em que as pessoas começaram a querer ter acesso ao conhecimento. Houve, em vários sentido, uma ascensão de classe, uma busca por conhecimento, e acho que isso favoreceu. Tudo isso é uma explicação racional, equilibrada, cartesiana, mas não tenho uma certeza exata sobre todas as variáveis. Parece que essas coisas acontecem.
Karnal não trata sua celebridade como algo sagrado. Nem ele é “sagrado”. Recentemente, foi surpreendido com uma avalanche de críticas e xingamentos após publicar no Facebook uma foto jantando ao lado do juiz Sergio moro. Até então, o professor era tido pela maioria de seus admiradores como um pensador identificado com ideias de esquerda – para seus depreciadores, um “petralha”, portanto. A foto com o juiz símbolo da Lava-Jato causou confusão em quem tem visão dicotômica. A polêmica foi tanta que Karnaç precisou apagar a foto e ir a público se explicar:
- Há palavras que são detonadoras de bloqueios mentais: Cuba, Che Guevara, Bolsonaro, Olavo de Carvalho, PT, Lula. Você não pode pensar, a única atitude aceitável depois de usar uma dessas palavras é insultar. Se você matizar, é agredido. Quando você está em um jantar com juízes e alguns daqueles juízes não é do agrado da pessoa, essa pessoa me classifica como “petralha” ou “coxinha”. O mundo emburreceu muito.
Ainda sobre o sucesso, Karnal gosta de lembrar que, da mesma forma como é parado em aeroportos para tirar fotos, o goleiro Bruno, preso por assassinar a ex-mulher, também é. Tem plena certeza de que o produto que está sendo consumido é a fama em si, e não as ideias. Essa percepção faz eco ao que diz o canadense Mathieu Deflem, professor da Universidade da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, e especialista em sociologia da fama:
- Fama pode ser baseada em qualquer coisa, seja um mérito, como fazer boa música ou ter ideias poderosas ou não, como um escândalo, um caso de sensacionalismo. Talvez Karnal seja famoso por causa da força de suas ideias, mas talvez seja po causa de sua careca. Eu não sei, e ele também não.
A HERANÇA PATERNA: “FOI EM CASA QUE CONHECI HOMERO, MACHADO, EÇA”
Em março deste ano, Karnal foi a São Leopoldo participar de uma cerimônia na Câmara de Vereadores que marcou a mudança do nome da Avenidas das Indústrias para Avenida Renato Karnal – nome de seu pai, morto em 2010. Da vida na cidade gaúcha, o professor se recorda das visitas à Biblioteca Pública Municipal Olavo Bilac (desde 2007 rebatizada como Biblioteca Vianna Moog), das aulas de piano e do incentivo à leitura que recebia em casa. Conta que, desde os primeiros estudos, no Colégio São José, sempre foi estimulado a ler clássicos e formar senso crítico. Em casa, recebeu uma formação “tradicional, que se voltava à erudição e ao domínio de fontes”.
- Sempre foi muito forte essa vontade de ler. Tive um pai que me ajudou muito com sua biblioteca e seu preparo. Foi em casa que conheci Homero, Machado de Assis, Eça de Queirós – conta.
Da mesa época, tirou a capacidade de apresentar-se em público com destemor:
- Nunca fiquei nervoso com plateia. Nem quando tocava piano em São Leopoldo.
Professor de latim e advogado, o pai de Karnal atuou fortemente na política local. Em tempos de ditadura, chegou à presidência da Câmara de Vereadores de São Leopoldo. Rocy Ferreira, presidente da Apae da cidade, conviveu com Renato em dois moentos: na década de 1950, como aluno de latim do respeitado professor do Colégio São Luiz, e depois, já a partir da década de 1970, como amigo pessoal do político influente. Conta que vê em Leandro a capacidade de oratória e a cultura vasta do pai – usa como exemplo um concurso de oratória realizado no Nordeste em 1956 e vencido pelo então professor. Lembra também de um Renato ainda mais popular do que Leandro.
- Procurava se interessar pelo aluno, era querido por todos. Como ser humano, sempre foi um exemplo, respeitou seus semelhantes, nunca ouvi ele falar nada de ninguém. Em questão de conduta, renato e Leandro são muito parecidos. Mas o Renato era mais popular, simplesmente chegava. O Leandro tem que pedir licença – lembra Rocy, para em seguida recordar de outra habilidade notável do Karnal pai: - Ele era uma pessoa inteligentíssima, muito culto e um exímio jogador de pingue-pongue. Acompanhei-o em diversas cidades jogando pingue-pongue. Ele juntou uma turma viajava com eles jogando. Chegou a vencer campeonato estadual.
Nos últimos tempos, Karnal vem contando a ODISSEIA para seu sobrinho de sete anos. Ele não gosta da ideia de missão, vê como algo religioso, mas sabe que tem capacidade ímpar de transmitir conhecimento:
- Uma palestra ou um livro não mudam tudo, mas são como uma estalactite pingando. Leiam, estudem, se desenvolvam. Alguns vão ter mais dificuldade, outros menos. Quanto mais acumularmos capacitação, menos a onda do futuro vai nos pegar desprevenido.
Suas palestras tratam bem do assunto: manter a vida sob rédeas-curtas, planejar ações a curto e a longo prazo, não terceirizar escolhas – todos são conceitos tratados sob diversos prismas e os mais variados tons em seus textos. Nesses eventos, costuma arrancar gargalhadas da plateia com esta tirada:
- Perguntam muito como eu consigo dormir só quatro horas. Ora, ao deitar eu coloco o despertador para dali a quatro horas e, quando ele toca, eu levanto. “Mas, Karnal, eu não consigo!”. Então, morra!
O fato, contado como piada, é verdade. O professor é metódico. Tem hora para dormir e hora para acordar (meia-noite e 4h). De quatro em quatro meses, tira férias. Para as próximas, marcadas para janeiro, viajará à Inglaterra, onde estudará a obra de William Shakespeare, um de seus favoritos, durante 12 horas diárias. Enquanto janeiro não chega, aproveita salas de embarque, poltronas de aviões e quartos de hotéis para estudar – ou simplesmente ler, turbinado pelo que chama de “uma grande capacidade de concentração e uma excelente memória”.
- Tenho a necessidade psíquica de obter o equilíbrio de vida lendo. Terminei ontem o PRISIONEIRAS, do Dráuzio varela, que remeteu a outra coisa: preciso reler, como comecei hoje, Cesare Beccaria, o grande iluminista jurídico do século 18, falando sobre direitos e penas. Lendo Beccaria, pensei: faz tempo que não leio o Código de Hamurabi, que estabelece a Lei do talião, um progresso jurídico. As coisas vão se encadeando para mim num sistema de interesse muito grande. Ler não é um peso, é uma alegria.
Até por isso, a rotina de popstar não o incomoda (a ponto de responder individualmente, em seu smartphone, aos comentários de seus seguidores) e não o deslumbra. Enxerga as palestras lotadas, os livros best-sellers e as milhões de visualizações no YouTube como uma expansão virtual de sua sala de aula:
- Uma coisa boa de ter mais de 50 anos é que você separa significado e significante. Eu sou Leandro Karnal, era Leandro Karnal dando aula na Unicamp, quando ninguém me chamava para palestras, e continuarei sendo Leandro Karnal dando aula na Unicamp em 2024. A fama traz coisas positivas, mas eu existia antes dela. Sei distinguir quem eu sou e os momentos – diz, para depois fazer algo incomum a historiadores, falar do futuro: - Não tenho o dom da profecia, então talvez este momento termine logo. Mercado cansa, as pessoas cansam, isso tudo pode passar. E aí, provavelmente terei tempo de ler mais, de escrever mais, de fazer mais as coisas de que eu gosto.
Fonte: ZeroHora/Caderno PrOA/Gustavo Foster (gustavo.foster@zerohora.com.br) em 18/06/2017