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Documentário: Um Poeta na Amazônia, de José Huerta
Documentário: Um Poeta na Amazônia, de José Huerta

PALAVRAS PARA APAGAR INCÊNDIOS

Filme sobre a Amazônia, mergulha na riqueza da floresta para denunciar a sua destruição

O Filme: UM POETA NA AMAZÔNIA - Documentário de José Huerta. França/Espanha/Brasil, 82 minutos.

"Por que continuo a lutar? Porque estou vivo!" — Davi Kopenawa

 

Uma canção indígena, imagens de uma estrada à noite, a voz de Arnaldo Antunes lendo seu manifesto Isto Não É um Poema, escrito em homenagem a Moa do Catendê, assassinado no dia da votação do primeiro turno nas eleições no Brasil em 2018.  É essa a porta de entrada do filme UM POETA NA AMAZÔNIA, de José Huerta, cineasta espanhol radicado em Paris.  As palavras de Arnaldo Antunes dão o tom do que veremos no filme.  Diante de um cenário de urgência, em que "o Brasil nega qualquer Brasil possível, cega qualquer futuro possível", como reagir?  O filme de Huerta parece ser uma resposta a essa cena inicial.  Ele nos leva ao coração da Amazônia, nos apresentando o poeta César Felix, que criou um polo de resistência cultural em Rio Branco (AC).

 

Felix abriu um espaço de encontros em um café e o nomeou Café com Poesia.  Assim, toda uma comunidade de pessoas que se sentem excluídas e ameaçadas por suas opções políticas e sexuais encontram ali um lugar de acolhimento, de escuta, de troca de ideias e de experiências.  Huerta tem um olhar atento para o Brasil há anos e já fez outros documentários em nosso país, como URUBUS (2007), EM DIREÇÃO A UM A TERRA SEM DOR (2007), UMA SEMANA EM PARAJURU (2009), TO BLO DAYI — VAGEM ÀS ORIGENS AFRICANA DA CAPOEIRA (2015) e outros.  Já filmou também na Bolívia, no Peru, na Colômbia, em Senegal, Benim e Madagascar.

 

Estamos diante de um filme que quer auscultar o coração da floresta e daqueles que resistem bravamente a sua destruição.  Não lutam só pela sua sobrevivência, mas pela de todos nós, pois sabemos que a floresta amazônica significa vida para todo o planeta.  As motosserras, os "dragões de ferro, como nomeia o poeta, abrem feridas profundas e, se não nos acordarmos a tempo, perderemos tudo.  O filme tenta registrar um pouco dessa dor no testemunho de muitas pessoas.  Comovente o relato de Maria Zenaide, a parteira de origem indígena que acompanha o nascimento de muitas crianças enfrentando situações de precariedade.  Uma figura musical, compositora, e que insiste em nos dizer que música traz saúde.  Huerta está atendo à composição dessas cenas e a filma também à noite, com uma pequena vela nas mãos adentrando a mata, como um vagalume lutando pela vida.  Em uma de suas músicas, ouvimos: "Os primeiros vagalumes são como as mulheres de força".

 

Outro vagalume que ilumina o filme é Sebastião Pereira, o Tião.  Entramos com ele na floresta, onde ele mostra algumas de suas riquezas.  Ele raspa a casca da seringueira e mostra o seu efeito cicatrizante quando colocado em um ferimento.  Diante de um Jatobá, abre um orifício e vemos jorrar um líquido de dentro da árvore que tem uma função medicinal para anemia. É anti-inflamatório e, segundo ele, é também o viagra da floresta.  Nesta cena surge então a pergunta: por que motivo se iria derrubar uma árvore como essa?

 

Um dos fios condutores do filme é um verso de César Felix:  "Se oponha com sonhos, não com lágrimas".  Portanto, ao mostrar alguns cenários de destruição, vemos imediatamente também a força dessas comunidades em tentar responder, como podem, a tantas violências.

 

O conhecimento da história é fundamental nesses movimentos, e o filme nos ajuda a construir uma narrativa da lógica de "ocupação" da Amazônia, sobretudo a partir da ditadura militar no Brasil, quando se pensava a floresta como um grande vazio.  Sabemos bem a quem interessava ocupar esses "vazios" fazendo terra arrasada de tudo que viam pela frente: flora, fauna e comunidades indígenas e ribeirinhas.  Esse cenário não mudou muito e só se agravou nos últimos anos em que as páreas de destruição aumentaram assustadoramente e o número de assassinatos e expulsão de indígenas de suas terras, também.

 

O filme termina com um chamado de esperança, quando Felix e Huerta visitam uma comunidade indígena dos Ashaninka, quase na fronteira com o Peru.  São os povos dos pássaros, e, assim, certa imagem de liberdade é transmitida na forma como vivem.  Em uma das cenas finais, vemos um indígena se pintando silenciosamente enquanto ouvimos o atual presidente dizendo: "Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola".  Mas a beleza da cena é mais forte, e a fala desse indígena responde à ameaça. Ele diz em alto e bom tom: "Somos brasileiros, e é neste país que vamos lutar pela sobrevivência".  Vamos precisar de muitos poetas na Amazônia, e este filme não deixa de ser um chamado, pois a sobrevivência é para todos nós.

 

 

Assista entrevista:  https://www.rfi.fr/br/podcasts/rfi-convida/20211129-document%C3%A1rio-traz-a-paris-a-poesia-do-brasileiro-c%C3%A9sar-f%C3%A9lix-no-cora%C3%A7%C3%A3o-da-amaz%C3%B4nia

 

Fonte:  Zero Hora/Caderno DOC/Edson Luiz André de Souza (Psicanalista, autor, entre outros, de "Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia" (Artes & Ecos, 2022), em 14/08/2022