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Cúpula de Belém: Natureza no Foco da Economia
Cúpula de Belém: Natureza no Foco da Economia

A NATUREZA NO FOCO DA ECONOMIA

Entrevista com Marcello Brito — Secretário-executivo do Consórcio Interestadual da Amazônia Legal

 

A constatação é forte: 100% da economia global atual é dependente da natureza. Ao mesmo tempo, a maioria das atividades econômicas subestima a natureza, usando-a como recurso ilimitado e gratuito quando, na verdade, não é.  No documento "Colocando os mercados de natureza para funcionar – Como moldar uma economia global da natureza no século 21", lançado durante a Cúpula de Belém, a NatureFinance, organização Internacional sediada em Genebra, chama a atenção para a necessidade de incluir os mercados financeiros internacionais, as empresas e bancos centrais, entre outros agentes econômicos, nas ações de proteção ao ambiente e combate às mudanças climáticas.  À coluna, Marcello Brito, secretário-executivo do Consórcio Interestadual da Amazônia Legal, explica as recomendações.

 

A Cúpula de Belém terminou com um texto bastante criticado por organizações ambientais pela pouca contundência em relação à exploração de petróleo na Amazônia e a falta de comprometimento com o desmatamento zero.  Qual a sua avaliação?

Houve dois momentos: primeiro, tivemos aqui o que foi chamado de Diálogos Amazônicos.  Foram 405 eventos, entre 3 e 7 de agosto, que reuniram as mais diversas frações da sociedade brasileira, indígenas, quilombolas, produtores, academia, ONGs, movimentos jovens.  Foi um momento bastante singular: pessoas muito aguerridas que foram silenciadas por muito tempo e aproveitaram esse momento para abrir o coração e colocar para fora essa raiva, essa angústia, desequilíbrio econômico, falta de acesso a coisas mais básicas, como saúde, educação, jovens gritando pela falta de emprego.  A Região Norte do Brasil é a que concentra o maior desemprego entre jovens.  Passado esse momento inicial, o que se viu foi o reencontro do diálogo. Discutiu-se desmatamento, política de desenvolvimento, restauração, conservação florestal, produção de alimentos. Depois veio a cúpula, um movimento presidencial.  Há muitos anos não acontecia. Não sei se acho que o documento final foi fraco.  Diria que foi o documento possível para esse momento. A última vez que os países se reuniram havia sido há 12 anos.  Então, isso talvez até explique um documento com 138 parágrafos, 20 páginas, o que é extremamente longo e que acabou deixando para trás muita gente.

 

O que exatamente ficou para trás no documento?

Deixou para trás municípios, Estados subnacionais de todos esses países, deixou de colocar pontos muito importantes que não eram de consenso entre os países: desmatamento zero, questão do petróleo.  Mas olho a metade do copo cheia.  E essa parte mostra o reencontro desses países, das populações e de personalidades de todos esses países de forma muito organizada.  Eu acho que foi um golação.  Mesmo para o Brasil, porque esse evento precede a entrada do Brasil (na presidência) no G20, que vai ocorrer a partir de setembro.

 

Vocês lançaram na quinta-feira o documento Colocando os Mercados de Natureza para Funcionar – Como Moldar uma Economia Global na Natureza no Século 21.  O que são os mercados de natureza?

Escolhemos esse nome, mercados de natureza, para designar tudo o que se relaciona ao solo, ao território, à gente, a florestas, à água, à conservação, à preservação, carbono e assim por diante.  É uma nomenclatura que engloba todo o universo da nova economia, da economia verde, que vai pautar os movimentos econômicos mundiais daqui para a frente.

 

A ideia é de que a natureza deve ser valorizada nas atividades econômicas. Como?

Tivemos um modelo de desenvolvimento econômico calcado principalmente em combustíveis fósseis, em extração ativa de tudo o que é da natureza e sem os devidos cuidados.  Isso nos trouxe a esse momento de exaustão causada pelas mudanças climáticas, provocando um número monstruoso de eventos climáticos no mundo inteiro.  No próprio sul do país, nos últimos seis anos, foram dez extremos climáticos: seca grave que vocês passaram por aí, enchentes, períodos extremamente quentes, geadas muito pesadas.  Olha a quantidade de quebra de safra agrícola que ocorreram no sul do país.

 

Tivemos vários ciclones do RS.

Quando você pega os relatórios do IPCC, do Painel Interministerial do Clima, e analisa relatórios de 15 anos atrás, os modelos matemáticos já previsão esse tipo de acontecimento para essa região do país.  Estamos assistindo nesses últimos anos a comprovação fática de modelos computacionais, matemáticos, produzidos há 15, 20 anos atrás.  Os modelos que estão sendo liberados hoje mostram a exaustão do planeta.  Do outro lado do país, na região do Xingu, aqui na Amazônia, começamos a observar, no ano passado, extremos climáticos que estavam previstos para acontecer a partir de 2040.  Todo mundo que acredita em ciência entende que a gente precisa fazer alguma coisa.  E essa alguma coisa é você mudar a estrutura de negócios do mundo, a forma como você produz, como utiliza os recursos naturais, como água e principalmente a floresta.

 

Vocês trazem uma proposta sobre desafios das instituições financeiras. Por onde começar?

Mudando a matriz de pensamento, a matriz cognitiva.  Há 10 anos, ninguém falava em cibersegurança. Hoje, você conhece alguma empresa que não investe milhões de reais ou bilhões, dependendo do tamanho da empresa, que não compra ali um antivírus ou um protetor qualquer para se proteger de invasões?  Todo mundo fala que o setor financeiro é avesso a riscos.  Então, por exemplo, é difícil você ter investimentos em regiões como a Amazônia, por exemplo, onde não tem uma governança pública tão estruturada como em outros países do mundo e isso gera risco.  Mas eu te pergunto: quando estamos sujeitos a impactos tão relevantes, decorrentes de mudança climática, isso representa um risco também?  Já é um risco embutido e conhecido ou não?  É claro que é.  Então você pega hoje os grandes investimentos que ocorrem no mundo, todos eles são precedidos, além da análise de risco tradicional e econômica, de uma análise de mudança climática.  O que estamos chamando atenção é que toda essa análise de risco ou benefício causado ou advindo das mudanças climáticas sejam inseridos também nos processos de financiamento.

 

Investimentos em imóveis em áreas de risco, por exemplo?

Vamos pegar a parte de financiamento de i móveis.  Quantos bilhões de dólares ou trilhões de dólares você acha que existem em hipotecas e financiamento de imóveis na linha costeira do mundo todo?  Um único banco estrangeiro que conversamos recentemente tem de hipotecas em imóveis litorâneos algo em torno de US$ 200 bilhões.  Se o oceano sobe 50 centímetros, qual será o impacto que essa instituição vai ter sobre esses US$ 200 bilhões?  Se aumenta o risco de maremotos, ciclones, etc, qual é o impacto financeiro?  Não há mais como dissociar as ações de análise de risco das mudanças climáticas.  O setor financeiro não pode mais ficar fora ou se manter à parte de todas essas questões porque, queira ou não, é o que faz a movimentação de qualquer outro setor econômico mundial.

 

 

Fonte: Zero Hora/Diários do Poder/Rodrigo Lopes [rodrigo.lopes@zerohora.com.br e @rlopesreporter] em 13/08/2023