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Celso Dias: Reencontrando Clarice Lispector
Celso Dias: Reencontrando Clarice Lispector

REENCONTRANDO CLARICE

 

PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM

 

Há 40 anos, em 9 de dezembro de 1977, morria Clarice Lispector, uma escritora que desperta cada vez mais paixões avassaladoras.

 

 

Na rua em que moro, João Teles, na esquina com a avenida Independência, foi construído, recentemente, um desses prédios modernos, com muitos vidros fumês e que até hoje não sei para que serve. Os mais jovens – de menos de quarenta anos – que cruzam por ele, lembram que ali ficava o Teatro da Ospa, os mais velhos, que como eu estão às portas dos sessenta, mas sem pressa de entrar, sabem que ali ficava o Teatro Leopoldina. Pois foi nessa antiga casa de espetáculos que, pela primeira vez, em 1976, ouvi falar no nome de Clarice Lispector. Estava lá escrito no programa do show da Maria Bethânia, “Pássaro da Manhã”, o nome da escritora. E vi maravilhado a grande intérprete baiana recitar um trecho do livro “A Hora da Estrela”, da nossa maior romancista.

 

Havia combinado com um grande amigo de irmos juntos ao show e quando cheguei em sua casa a mãe dele perguntou onde íamos. Falamos que iríamos ao show da Bethânia e ela imediatamente voltou-se para o meu amigo, seu filho, e disparou: “eu não acredito que vocês vão pagar sessenta cruzeiros para ver um show daquela maconheira”. A frase dela foi como uma facada no peito, meu amigo entrou em seu quarto e se trancou; por alguns segundos ouvi alguns soluços. Logo em seguida, ele saiu com os olhos vermelhos e disse que não iria mais ao show. Me despedi de todos e saí correndo, morávamos longe e não queria me atrasar.

 

Peguei algum ônibus que me deixava na avenida Osvaldo Aranha e aproveitei a subida da João Teles para entrar em sintonia com Bethânia, afinal, não se escolhe ídolos por acaso. Entre as belas canções que, no auge de seus trinta e poucos anos, a mana Bethânia cantou, havia textos muito inspirados; lembro bem de um poema de Fernando Pessoa, mas o que me impressionou, mês mo, foram as palavras de Clarice Lispector. “Este show (história) acontece em estado de emergência e calamidade pública. Trata-se de um show (livro) inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo me dê.

 

Vós? É um show (história) em technicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos” (A HORA DA ESTRELA).

 

Saí do Teatro Leopoldina em êxtase, caminhei pela avenida Independência convicto de ter feito uma grande descoberta. Fui a pé até o centro e quase perdi meu último ônibus para os confins do Partenon, que, naquela época, era bem mais longe que hoje.

 

Na segunda-feira, aproveitei o horário do almoço, na Ferragem em que trabalhava, e fui à Livraria do Globo e comprei no crediário um exemplar de cada um dos livros da Clarice Lispector que havia a disposição na loja. Foram cinco de uma só vez. Veio nessa primeira leva, PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM, A MAÇÃ NO ESCURO, A PAIXÃO SEGUNDO GH, LAÇOS DE FAMÍLIA e A HORA DA ESTRELA. Comprei sem pedir autorização para o meu pai, eu tinha dezessete anos e, naquela época, dezessete anos era bem menos que hoje. Há alguns meses havia cometido uma extravagância, de comprar uma máquina de escrever, coisa absolutamente desnecessária, segundo ele, e que ninguém na família tinha uma.

 

Comecei a ler os livros, iniciei mais de uma vez cada um deles, mas a leitura não engrenava, sentia prazer em ler, mas não encontrava a história. Sabia que lia algo grandioso – não sei de onde tirara esta ideia – mas não visualizava as personagens, não identificava os lugares, enfim, não sabia o que estava acontecendo. Ainda assim, havia um prazer inexplicável em enfrentar aquelas frases, se esgueirar entre as vírgulas em busca do sentido. Eram encruzilhadas sem indicação para onde seguir, enigmas linguísticos para mim insolúveis, um desafio sem precedentes.

 

Um dia resolvi dar um tempo nos romances e passei a enfrentar os contos, pois estes eu conseguia ler até o final. Precisei de muitas leituras da mesma história para entender o que se passava e, com estas narrativas curtas, criei um método para ler Clarice, o que me ajudou e fez a diferença dali por diante. A dificuldade para o iniciante na leitura da obra da autora de PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM é que as personagens quase não se movem, o tempo se nega a passar, o espaço carece de profundidade e extensão; enfim, as coisas quase não acontecem. Passei a anotar na margem do livro que eu lia, quando alguma personagem executava uma ação: caminhava pela cidade sem rumo, sentava no ônibus e observava pela janela um cego mastigando chiclete, ou fazia bolinhas com o miolo do pão, sentada à mesa, após o café da manhã. Todas essas parcas ações eram recheadas de considerações, reflexões e outras peripécias mentais. Eram poucos movimentos, sendo que o antes e o depois eram preenchidos por divagações infindas, pensamentos que se enroscavam, se bifurcavam e se desdobravam em tantos outros que quase perdia o fio da meada.


Na época eu já enfrentara Machado de Assis e Raul Pompéia, que me emprestaram régua e compasso, bússola e mapa para enfrentar territórios de linguagem assim tão acidentados como os da obra de Clarice. Eu já intuíra um mistério presente naquela narrativa enviesada, um tanto retorcida e, depois disso, parecia não ter mais como fugir. Nunca mais me livrei do hábito de conviver com suas personagens, de desbravar seus emaranhados caminhos.

 

Nosso grande embate se deu, sobretudo, em torno de A PAIXÃO SEGUNDO GH, para muitos a obra-prima da autora e um dos grandes livros da literatura em língua portuguesa. Foram muitas tentativas até completar, pela primeira vez, s leitura. Meu método de lê-la até que me ajudava. Mas o mudo de interior de GH era tão intenso que ela pouco existia. As quase duzentas páginas da história não contavam mais que duas ou três horas na manhã de uma mulher: o final do café da manhã e uma caminhada até o quarto da empregada, que há poucos dias deixara sua casa. Poucas personagens, pouco tempo, pouco espaço e muita história. Hoje já passei da décima leitura desse romance, faz alguns anos que não o leio, mas sei que a próxima vez que o encarar, ao final da leitura, terei a mesma sensação das outras vezes: eu vou entender melhor esta história, quando ler novamente. Mas que história é essa? A história de amar Clarice e ter o prazer de ficar a sós com ela em torno de um livro. É como uma iniciação que sempre tem no próximo ritual a promessa da revelação final, de um mistério que, como tal, nunca se dá a conhecer.

 

E quanto ao meu amigo, que não foi ao show da Bethânia em 1976, ele nunca conheceu Clarice!

 

Fonte: Correio do Povo/caderno de Sábado em 16/12/2017  

Por Celso Dias — Escritor e antropólogo