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Donaldo Schüler e o Pesadelo e os Livros
Donaldo Schüler e o Pesadelo e os Livros

O PESADELO E OS LIVROS

 

Para espanto do diretor, declara um professor no ULISSES, de Joyce: “A história é um pesadelo do qual tento despertar”. Que histórias é essa? A conhecida, a de todos os dias, a nossa. Pesadelo é a revoada de produtos fabricados para serem consumidos, mercadorias fascinantes invadem a imagem televisiva, mergulham tirânicas em sonhos diurnos e noturnos, fulguram em cartazes luminosos, erguem-se gigantescas ante passos incautos no cruzamento de ruas, mercadores oferecem a paz dos campos e atordoados, imagens seduzem com leitos macios. Para exaustos, há litorais enfeitados de palmeiras. O paraíso comparece retalhado em produtos para todos os gostos. Não há o que não se possa comprar mediante cômodas prestações a perder de vista, o prazer de uma semana pode ser parcelado em compromissos de um ano. Produtores festejam a manufatura que os consome, consumidores dobram os joelhos ante altares erguidos a ídolos devastadores, ruídos estridentes silenciam palavras inventivas. Em lugar da arte, o luxo. Apressados recorrem ao pó que escancara o jardim das delícias no momento da inalação.

 

Como atravessar as paredes que nos encarceram? Governantes destrambelhados voltam a erguer muros no Globo sem fronteiras. O mundo globalizado desdiz ideias fora do lugar, as mesmas frequentam todos os recantos. Ideias ou vacuidades? Portas abrem-se a outras celas, além dos muros estendem-se paisagens com elevações familiares. O totalitarismo sem rosto teme os que isolam para pensar, para criar.

 

Como apontar fronteiras linguísticas se todos os idiomas foram extintos em favor de uma língua só? O único instrumento imposto a falantes expandiu-se não para favorecer diálogos, alarga-se para transmitir ordens e submissos, a língua universal veicula cultura universal, obviedade universal. Liberdade de expressão? Exprimir o quê, se não há ouvidos para ouvir? A mudez dos mísseis silencia a eloquência de assembleias mundiais. Gritos de multidões batem em ouvidos de mercador.

 

Quem deseja despertar é Stephen Dedalus. O nome merece atenção. Stephen ou Estevão é o santo que foi apedrejado por testemunhar o que autoridades não queriam ouvir. Dedalus é o artista, o construtor do labirinto. Stephen Dedalus concentra testemunha e inventor. Nem todos os labirintos são letais, labirintos protegem perseguidos, escondem mistérios, oferecem saídas a quem busca. Stephen Dedalus constrói labirintos, produz livros. Livros despertam? Não todos, livros suspeitos afagam necessidades inexistentes, ostentam saber burocrático, cauteloso, vigilante, cultivam repetição esterilizante, sublinham modelos consagrados; fingindo renovação, festejam o permanente, repudiam reflexões revolucionárias, comportamento inusitado – livros suspeitos entorpecem, sufocam inventos. Periódicos de leitura leve aceleram o desfile de novidades, notícias, personalidades, imagens(fotografia, cinema, televisão). O chamariz turístico abrevia distâncias, materializa ilusões, sufoca o poder de imaginar, de produzir, de ser.

 

Livros confiáveis provocam a passagem da certeza à dúvida, da ociosidade à produção, do equilíbrio à vertigem, convocam o protesto, destronam mandantes, conferem ao leitor autoridade, privilégio outrora do autor, em lugar da unidade, a diversidade; em lugar da afirmação, a negação; em lugar do estilo, a proliferação de estilos. Traduções demandam cautela. Originalidade requer tradutores originais, bons são os livros intraduzíveis. Livros libertam? Só os difíceis, livros fáceis vendem o que já temos, o que já sabemos, o que acertadamente ignoramos, o livro difícil desperta energias adormecidas. O despertar é lento, é de vida inteira.

 

Que tal autoria generalizada, o cultivo de linguagens peculiares, a dissonância? O desentendido, o mal compreendido podem esconder a verdade, um pedacinho dela, a tua; A língua dominante, o estilo dominante têm a peculiaridade de selecionar o inteligível, o traduzível, o banal. O melhor oculta-se na dissonância, na divergência.

 

Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Donaldo Schüler (Escritor, tradutor de James Joyce) em 22/04/2016.