UMA DAS FUNÇÕES DA ARTE É OLHAR PARA A FERIDA
Diretor do Teatro da Vertigem, que terá livro comemorativo, Antônio Araújo está à frente de mostra internacional.
Estudada por inúmeros pesquisadores, a trajetória de 26 anos do Teatro da Vertigem se confunde com o surgimento de um novo paradigma do teatro brasileiro. O grupo foi um dos pioneiros, nos anos 90, a adotar o processo colaborativo, que segue novos modos de organização do trabalho, sob métodos horizontais de criação e produção.
Diretor artístico da companhia e também da 5ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em cartaz até o dia 11 (em março), Antônio Araújo não vê diferenças entre o seu papel como encenador ou programador do principal festival de artes cênicas da cidade. “Uma das funções da arte é olhar para a ferida, aumentar a nossa percepção e provocar desestabilização – ainda mais nestes tempos conservadores que estamos voltando a viver”, afirma. “Esse enfrentamento tornou-se hoje bem mais violento, porém também mais urgente e necessário, e é o que estamos tentando fazer.”
Neste ano, um livro comemorativo vai repassar a carreira da companhia. E a produção de um espetáculo inédito, de ocupação de espaço público, está sendo negociada com um país da Europa. Aids, massacre do Carandiru e destruição ambiental foram alguns dos temas tratados em seus espetáculos, sempre focados em questões da atualidade. Para realizar BR-3 (2006), o grupo percorreu, ao longo de dois anos de pesquisas, Brasilândia (na periferia de São Paulo), Brasileia (AC) e Brasília (DF), como microcosmos de investigação sobre a identidade brasileira. Realizado no Presídio do Hipódromo, APOCALIPSE 1,11 partiu do contato com presidiários e abordou o massacre do Carandiru.
“A gente queria trazer à tona essa temática social, política e econômica, de um dos países mais violentos que existem e que carrega esse mito de um Brasil alegre – uma grande bobagem.”
Como marca principal, a realização de apresentações em espaços públicos não convencionais da cidade de São Paulo, como Hospital Humberto Primo e rio Tietê. Logo na estreia, ao ocupar a Igreja Santa Efigênia com PARAÍSO PERDIDO (1992), o grupo foi alvo de protestos e ameaças de morte, o que apontou um caminho.
“Percebemos o poder de mobilização do teatro, algo sobre o qual tínhamos apenas ouvido falar”, diz. “Muitas pessoas conhecem o grupo apenas pela questão do espaço e perguntam: ‘Onde vai ser agora? No cemitério?’”
As decisões artísticas e de produção são tomadas coletivamente, por meio de discussões e votações. O lucro é distribuído de forma igualitária. Para Araújo, também professor de artes cênicas na ECA-USP, o modelo cooperativo de trabalho procurava romper com os resquícios de um Brasil ditatorial, em vias de redemocratização.
Estava também em jogo o desejo de deixar para trás uma era em que grandes encenadores, como Gerald Thomas, Gabriel Villela, Bia Lessa e Ulysses Cruz, ocupavam o epicentro da sala de ensaio. “Havia um incômodo com este tipo de processo em que o ator é quase um contrarregra de luxo e tudo gravitava em torno do diretor.”
Em vez de determinar os sentidos da cena, como diretor clássico, Araújo acredita que o seu papel é estimular os atores, apontar caminhos e arregimentar as propostas experimentadas. Mais longos, os processos colaborativos exigem meses de improvisos, negociações e debates cansativos. Os intervalos entre cada espetáculo podem chegar a cinco anos. “Costumo terminar esses trabalhos não querendo nunca mais fazer processo colaborativo na minha vida, mas depois passa.”
Menos desgastante é o exercício da função de diretor da MITsp, que se consolidou como principal festival de teatro de São Paulo. Neste ano, o evento inaugura a plataforma MITbr, que reúne oito espetáculos brasileiros de destaque do ano passado. Entre eles estão “CARANGUEJO OVERDRIVE (RJ), HOTEL MARIANA (SP), DINAMARCA (PE) e VAGA CARNE (MG). Para assisti-los, estão confirmadas as presenças de 20 programadores de festivais internacionais de 18 países. A intenção é ampliar a circulação no exterior, um mercado pouco explorado pelo Brasil. “Com exceção de nomes pontuais, como Lia Rodrigues e Christiane Jatahy, a produção brasileira é muito pouco conhecida lá fora”, diz.
A quinta edição do festival traz ainda uma performance de 24h do brasileiro Nuno Ramos, A GENTE SE VÊ POR AQUI, onde os atores recebem por fones de ouvido o áudio da programação da Rede Globo e interpretam, parodiam e improvisam a partir do conteúdo. A programação contém nove espetáculos internacionais, de países como Alemanha, Polônia e reino Unido. Entre os destaques está a presença do mestre do teatro polonês Krystian Lupa, com a peça ÁRVORES BATIDAS, baseada no livro de Thomas Bernhard (1931-1989).
Da vertente do teatro documentário, a argentina Lola Arias traz CAMPO MINADO, sobre a Guerra das malvinas, que conta com ex-combatentes argentinos e ingleses em cena. Do suíço Christoph Marthaler, a mostra recebe o delicado musical KING SIZE. “Como vivemos quase uma hegemonia dos musicais em São Paulo, cuja única referência é a Broadway, achamos interessante trazer este contraponto, de sofisticação e inteligência.”
Fonte: Revista Valor/João Bernardo Caldeira em 02/03/2018