UM NOBEL PARA A CANÇÃO
Bob Dylan: Dez pitacos sobre o prêmio concedido ao bardo.
Neste ano, o premiado com o Nobel não apenas é um nome pronunciável, como também é muito conhecido e, surpresa, assobiável. Bob Dylan, aquele mesmo, que Eduardo Suplicy canta à toa, que o Caetano Veloso traduziu e o Vitor Ramil aclimatou numa história em Pelotas: esse é o homenageado! Muita coisa se enrosca aí; vale a pena ir por partes.
1. Prêmio é prêmio: tem bastidores impublicáveis, pressões, canelada, tudo isso. Não é a voz de um deus, mas a visão de uma instituição, contingente como tudo que é humano. Borges, consta, não ganhou porque celebrou o ditador Pinochet, assim como, antes, Samuel Beckett foi preterido porque “sua natureza negativista vai de encontro à natureza do prêmio”, segundo palavras textuais da ata do prêmio em 1964 – a Fundação Nobel mantém segredo sobre as deliberações por 50 anos.
2. O prêmio não vai para um poeta ou memorialista, mas para um cancionista. Esta palavra não é usada por preciosismo, mas por precisão: cancionista é o sujeito que faz canção, esta forma artística que nasce e vive equilibrando-se entre música e poesia, sem poder afastar nenhuma de suas partes: mesmo quando a gente cita apenas o texto de uma canção, lá no fundo da nossa percepção, da memória, do corpo, está alguma coisa musical, sua melodia, sua levada, o arranjo, o timbre da voz do cantor.
3. Canção é literatura? Tenho certeza de que é uma arte letrada, no sentido de que depende vivamente da letra, das letras, sem as quais uma canção não é o que é. Um autor de teatro mereceria um prêmio Nobel? Se a resposta é sim, então deve ser sim também para um cancionista, este outro artista da performance.
4. Dylan é um estadunidense, logo um sujeito que vive à sombra magnífica de tantos outros bardos, desses que soltam a voz nas estradas. No mínimo, Whalt Whitman e parte da Geração Beat.
5. Se ele ganhou o Nobel, então significa que qualquer canção mereceria semelhante destaque? Não, pedro-bó. Ninguém pensa em validar o romance porque o Paulo Coelho o pratica, certo? Assim também não tem cabimento pensar que Dylan valida a Eguinha Pocotó ou MC Catra, exemplos de arte de puro entretenimento, sem qualquer aspiração acima desse horizonte.
6. Outra notícia que o Dylan nobelizado nos dá é sobre a historicidade dos gêneros artísticos. Quando o primeiro cara fez a primeira fotografia, não estava em jogo fazer arte. Era técnica servil, sem transcendência. Mas bastou que artistas a manejassem. Assim ocorreu com os gêneros que agora são considerados elevados, como o romance. Ele nasceu em berço bagaceiro, o jornal cotidiano, entre uma notícia de um assassinato e o preço das ou o registro da chegada do navio de carga. Só bem depois ele ganhou elegância. Historinha real: o grande romancista escocês Walter Scott, autor do IVANHOÉ, nem assinava seus romances, de tão vulgares que eram. Eram.
7. Bem assim aconteceu com a canção. Nascida como função direta da fala, da entoação, para cantar a primavera que chegava ou a moça que passava, pra maldizer o vizinho ou saudar o amigo, ela alcançou alturas inimaginadas para a bastardia e a imediatez de sua origem. Houve vários aportes letrados: árias de ópera cantadas por todo mundo, alguns “lieder”, composições eruditas feitas sobre poemas.
8. Por outro motivo ainda o Nobel para o bardo Dylan ecoa fundo e longe: é que nas Américas, seja a rica e letrada do Norte ou as pobres e iletradas Central e do Sul, ocorreu a pororoca única entre música europeia e música de afrodescendentes. Com mais acento aqui ou ali, com ou sem outros elementos culturais na mistura – Dylan bebeu da água da canção de esquerda dos anos 1930 e 40, com Woody Guthrie e Leadbelly, equiparáveis a alguns sambistas e caipiras “de protesto” da mesma época no Brasil –, foi nas Américas que a mestiçagem deu frutos: o soul, o blues, o tango, o samba, a milonga, o reggae.
9. Tese acessória: O Nobel de Dylan vai também para sua geração. Paul McCartney e o falecido John Lennon, Joan Baez e Rita Lee, Caetano e Gil, Chico Buarque e Paulinho da Viola, ponha aí outros tantos nomes, Neil Young e James Taylor, sei eu lá: os nascidos entre 1940 e 1950, que estudaram ou podiam ter estudado o que quisessem, que chegaram à vida adulta nos 60, quando o rádio passava a bola para a televisão, e que herdaram um jeito de dizer as coisas que vinha de um bom tempo, mas especialmente vinha da geração anterior, da Era de Ouro do Rádio. A geração de Dylan inseminou esse legado com sua formação letrada num contexto de explosão da autoconsciência jovem, pela primeira vez um setor social nítido.
10. Dói na alma de alguns o fato de que a canção viva no lamaçal do mercado (Mário de Andrade nunca aceitou o samba como grande arte por isso) e, oh, horror, ainda faça sucesso. A alguns parece que a condição da boa arte é a incomunicação e o fracasso. A canção, até mesmo a melhor canção, encontra seu público.
Fonte: ZeroHora/Caderno PrOA/Luíz Augusto Fischer (professor de Literatura da UFRGS e escritor, organizador (com Guto Leite) do livro O ALCANCE DA CANÇÃO (2016). em 16/10/2016.