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Jeroen van Aken Hieronymus Bosch: Pintor Holandês
Jeroen van Aken Hieronymus Bosch: Pintor Holandês

DELÍRIOS DE GÊNIO

 

No 500º aniversário de sua morte, o pintor holandês Hieronymus Bosch é tema de mostras grandiosas na Europa e de um projeto esclarecedor sobre suas obras. O significado de suas estranhas imagens, porém, ainda desafia estudiosos.

 

Na Holanda da virada do século XV para o XVI, o pintor Jeroen van Aken levava uma rotina frugal. Seu hábito mais corriqueiro consistia em atravessar a praça do mercado de sua cidade de origem, a florescente’s-Hertogenbosh, para ir de casa até o ateliê que dividia com o pai e irmãos. Nos registros locais, consta que ele se casou com uma moça bem de vida e não teve filhos. Herdou uma propriedade aqui, vendeu outra ali. À medida que ganhou fama, também viu seu status se ampliar: tornou-se membro eminente da Irmandade de Nossa Senhora, que reunia a elite de ‘s-Hertogenbosch. Mesmo tendo merecido as devidas homenagens de sua liga religiosa, seu funeral foi o de um cidadão remediado, não rico ou nobre. O fato de isso ser quase tudo o que se sabe sobre a vida do homem comum Van Aken só amplifica os mistérios sobre a obra incomum de sua conhecidíssima persona artística. A meio caminho entre o fim da Idade Média e a explosão do Renascimento, Hieronymus Bosch (1450-1516) criou um capítulo singular na história da pintura. Obras como a célebre O JARDIM DAS DELÍCIAS TERRENAS – tríptico pertencente ao Museu do Prado, em Madri – assombram o mundo há cinco séculos com sua miríade de anjos, demônios, quimeras e toda forma de estranhice delirante. Neste ano de 2016, mais precisamente em 9 de agosto, completam-se 500 amos da morte de Bosch. Eis um belo pretexto para entender como ele se converteu no maior enigma da arte.

 

Os dois grandes eventos da efeméride permitiram avançar ao menos em um aspecto importante do mistério Bosch: a identificação de suas obras. A mostra VISÕES DE GÊNIO, em cartaz até o começo de maio/2016 num museu na mesma ‘s-Hertogenbosch onde ele viveu, já está com seus 380.000 ingressos esgotados. Logo após seu término, será a vez de o Prado reunir, pela primeira vez na história, um conjunto tão significativo de seus trabalhos. Um projeto iniciado há nove anos, como aquecimento para as duas mostras, promoveu a restauração e o estudo do legado do pintor. Descartou-se definitivamente sua autoria em obras que especulativamente lhe eram atribuídas. Em compensação, tecnologias que vão da análise microscópica aos raios infravermelhos acrescentaram dois novos itens ao reduzido acervo de 25 pinturas e número similar de esboços que sobreviveram para ser vistos hoje: um desenho que pertence a um colecionador particular e o precioso fragmento de um painel que jazia desde os anos 1930 no depósito de um museu em Kansas City, nos Estados Unidos.

 

Um documentário sobre o artista produzido pelo Prado, com lançamento em junho/2016, deve explorar as razões pelas quais nem todo esse esforço que envolve as mais novas ferramentas da tecnologia conseguiu responder à questão essencial: qual é, afinal, o significado das imagens saídas da mente do artista? Nas suas pinturas, cada detalhe é um deleite e um quebra-cabeça em potencial: figuras humanas nuas mesclam-se a animais fantásticos, monstros devoradores de corpos e paisagens insólitas. Nenhum artista, aliás, se esmerou tanto em extrair dos elementos da natureza o exato oposto do que poderia ser chamado de natural. O adjetivo “boschiano” sintetiza tal marca: sem sua pintura, talvez não houvesse o sombrio Goya, nem um surrealista como Salvador Dalí.

 

Alegoria moral ou puro pesadelo, a mensagem de Bosch só pode ser apreendida na base do palpite. Uma dificuldade impede qualquer tentativa de interpretação peremptória de sua obra: o silêncio do artista. Bosch não deixou nenhum escrito ou pensamento sequer – mesmo que terceirizado por biógrafos, como ocorreu no Renascimento italiano graças às narrativas de Giorgio Vasari (1511-1574). Ele não nomeou suas obras: títulos como O JARDIM DAS DELÍCIAS TERRENAS são póstumos. E nem se conhece sua face com certeza: afora imagens que se desconfia serem autorretratos dentro de seus quadros, a efígie mais conhecida é um desenho feito mais de trinta anos após sua morte.

 

Na ausência de fontes seguras, tais lacunas foram preenchidas por uma torrente de especulações. As teorias conspiratórias de um Dan Brown no best-seller O CÓDIGO DA VINCI são fichinha perto do que já se falou sobre o tema. Bosch foi pintado como um artista demoníaco ou que teria pertencido a uma seita primitiva cultuadora do nudismo (daí tantos pelados em seus quadros). Falou-se que suas imagens bizarras seriam fruto do efeito de alucinógenos. No século XX, surgiu a tendência de tentar explicar sua pintura por um prisma psicanalítico: Bosch seria um reprimido que só pensava em sexo.

 

Boa parte das teorias negligencia o óbvio: Bosch era um homem de sua época. Na sua formação profundamente religiosa, a vida é uma eterna escolha entre o bem e o mal. O humor de sua arte não deve ser visto como um desvio insolente. Ao contrário; como lembra o holandês Johan Huizinga (1872-1945) num ensaio clássico sobre a Idade Média, no imaginário do homem comum daqueles tempos a caricatura e o tom jocoso eram associados a forças diabólicas. Expor o monstruoso e o grotesco em toda a sua chocante literalidade – inclusive em imagens lascivas – servia para reiterar justamente o valor de seus opostos, a pureza e a castidade.

 

Mesmo levando-se em conta o peso da tradição medieval, a contemplação de seus quadros deixa uma certeza: Bosch foi um comentarista maroto da vida e da religião. Sua ousadia técnica e sua visão de mundo totalmente individual apontam para a modernidade. Se seus delírios de gênio permanecem até hoje um mistério, é porque ele talvez já intuísse o que torna um artista imortal: a impossibilidade de prendê-lo em qualquer camisa de força. Ainda que ele pinte como um doido.

 

Jardim das Delícias

 

Fonte: Revista VEJA/ Marcelo Marthe em 06/04/2016.