PRIVACIDADE NA INTERNET
Os usuários de redes sociais e aplicativos têm realmente noção dos riscos que enfrentam? Especialista no tema, o chefe de Polícia do Rio Grande do Sul, Emerson Wendt, entende que há, no máximo, privacidade relativa. “Do que gostamos, aonde fomos e com quem estamos torna-se o capital, o ativo comercializável das mídias sociais”, alerta. O jornalista e professor da PUCRS André Fagundes Pase entende que o usuário também tem parcela de responsabilidade, principalmente quando aceita condições de serviços sem olhar o contrato. E adverte: “Discutimos nas timelines, mas não prestamos a devida atenção à forma como a vida digital funciona”.
NÃO HÁ “ALMOÇO GRÁTIS” NAS REDES SOCIAIS
por Emerson Wendt
Chefe de Polícia Civil no RS, especialista em crimes cibernéticos
Se eu perguntasse agora, pessoalmente, onde você jantou ontem, com quem você estava e para onde você foi depois… você contaria? Ou melhor, você contaria a um estranho ou a um conhecido? Provavelmente a sua resposta seria um sonoro “não”. E por que isso? É simples: você e eu – todos nós – gostamos de preservar a nossa privacidade e não abrir mão dela senão às pessoas muito próximas, a um círculo restrito de amizades e familiares “e olhe lá!”.
No entanto, eu, você e mais de 2 bilhões de pessoas estamos conectados ao Facebook. Eu, você e mais 1,5 bilhão de pessoas estamos conectados ao WhatsApp. Muitos de nós sequer leem os “Termos de uso” a e “Política de Privacidade”, tampouco analisam e adequam as configurações de privacidade das redes sociais que diuturnamente acessamos. Assim como podemos vasculhar informações alheias, espontaneamente expostas nessas mídias, assim também é possível que outros o façam em relação a nós.
Resta, pois, uma pergunta: existe privacidade no contexto atual? Posso dizer que não! No máximo, essa privacidade é relativa, pois as configurações nos permitem restringir os dados a outros usuários, porém elas ficam disponíveis para o “dono” da rede social, que, por disponibilizá-la de forma “gratuita” (sim, entre aspas), forma seu banco de dados de usuários e os analisa de maneira a transformá-los em dinheiro. Do que gostamos, aonde fomos e com quem estamos torna-se o capital, o ativo comercializável das mídias sociais. Não há gratuidade na rede, ou melhor, não “há almoço grátis”!
Estamos aprendendo a lidar com essa perda de privacidade e com os riscos no ambiente digital, mas apenas em situações envolvendo a exposição de dados de usuários de mídias sociais – o mais recente, do Facebook, com mais de 440 mil dados de brasileiros sendo usados para fins escusos –, é que passamos (ao menos deveríamos) a tomar cuidados antes impensados. Entre os aspectos em que precisamos atentar, naturalmente avaliamos o risco e a teoria da compensação correspondente, ou seja, “o quanto vale a pena correr este ou aquele risco? Conectar-se a esta ou aquela rede? Os benefícios serão maiores que eventuais riscos futuros?”. Afinal somos humanos e estamos acostumados a correr riscos!
Então, se estamos dispostos a correr riscos na web e diminuir a exposição, ou melhor, a manter o mínimo de nossa privacidade, seja sobre o que é segredo ou sobre o que é reservado (a poucos), podemos reduzir as possibilidades de invasão e de captura de informações privilegiadas, começando pelos processos de dupla verificação ou autenticação, com senhas de oito dígitos, alfanuméricos e com caracteres especiais, uma senha para cada aplicativo etc. etc. etc. As configurações de privacidade, com reserva aos amigos ou somente a determinadas pessoas, aliadas aos cuidados quanto ao check-in e restrição de informações familiares, são passos importantes e fundamentais. No entanto, privacidade plena na era digital, somente se não estivermos conectados nas redes sociais!
ACEITAMOS OS TERMOS SEM OBSERVAR O CONTRATO
por André Fagundes Pase
Jornalista, professor da Escola de Comunicação, Artes e Design da PUCRS (afpase@pucrs.br)
O uso escuso de dados pessoais, presentes no Facebook configura a última versão da formação da privacidade contemporânea. Anos atrás, o programa de vigilância Prism foi revelado para o público, mas o debate sobre esta questão proposto por Edward Snowden arrefeceu para o grande público. Assim, na era de compartilhar experiências em busca da atenção do outro, a sociedade paga um preço alto por não refletir corretamente sobre os atuais fluxos de conversação e as propriedades dos canais utilizados.
O estranhamento provocado por sistemas integrados que exibem produtos e links conforme rastros digitais foi acentuado. O alerta sobre o uso de cookies realizado no início da internet comercial não foi considerado e os eficientes sistemas personalizados no smartphones acentuaram isso. Trocamos dados pessoais por serviços sem entender o devido valor da compra.
Softwares são elementos sociais e políticos, e, ao refutar a sua compreensão em nome da dificuldade de compreender termos, transferimos para terceiros a responsabilidade da construção da sociedade contemporânea. Aceitamos termos de serviço de apps sem leros o contrato, sem questionarmos interesses e processos. Neste cenário de um crime perfeito, sem que todos os culpados sejam arrolados no processo, Mark Zuckerberg tornou-se um “vilão” conveniente que expurga a nossa culpa pela falta de uma educação e de um uso ético das ferramentas – mais uma das nossas hipocrisias digitais.
Também são réus a imprensa e o comércio, que colocaram seus bens principais em espaços gerenciados por terceiros em busca de atenção e sobrevivência dos seus negócios, sem propor e, principalmente, manter redes próprias.
O balanço positivo de hoje esconde problemas maiores amanhã. A academia falhou ao não ser mais incisiva na proposição de tecnologias, pois precisa empregar seu tempo e conhecimento para encontrar estratégias de sobrevivência da sua pesquisa. Juristas necessitam aprender de fato as dinâmicas online, pois crimes e delitos passaram por upgrades e um bug em uma sentença que não compreendeu a técnica pode ser um erro fatal. Além disso, políticos são coniventes com tais práticas e acabam por usar as redes para a rasa exposição em busca do voto. O Marco Civil da Internet é constantemente ameaçado com debates tortos que escondem interesses escusos.
A falta de uma correta educação para as mídias cobra um preço alto. Discutimos nas timelines, mas não prestamos a devida atenção na forma como a vida digital funciona. É preciso cuidado para que o upgrade deste debate não corrompa ainda mais o desempenho do sistema. A demanda por uma regulação de rede não pode ser disfarce para uma nova forma de censura. Devemos utilizar serviços com algoritmos e rotinas transparentes, também remunerando criadores por produtos pagos que operam de forma justa. Infelizmente, a responsabilidade sobre o uso da internet foi transformada em formulários de reclamação sem respostas humanas – e concordamos com isso.
Fonte: Zero Hora/Duas Visões em 22/04/2018.