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A Máquina não Lê Entrelinhas
A Máquina não Lê Entrelinhas

O QUE OS ALGORITMOS NÃO VEEM, PARTE 1: A MÁQUINA NÃO LÊ ENTRELINHAS 

A inteligência artificial opera reconhecendo padrões, mas conhecer vai além de correlações estatísticas 

 

Na zona leste de São Paulo, a professora Jussara equilibra dois mundos. Na tela do celular, gráficos coloridos gerados por inteligência artificial: curvas, setas e percentuais que prometem traduzir a aprendizagem de seus alunos. Em um bilhete escrito a lápis, lê: “Profe, minha cabeça doía enquanto eu tentava fazer a conta de dividir. Posso te mostrar um jeito diferente amanhã?”. Entre o algoritmo e o bilhete, a educação revela sua essência: aquilo que é evidente nas entrelinhas, mas que nenhuma máquina enxerga.

 

O paradoxo da eficiência

A inteligência artificial opera reconhecendo padrões. Ela organiza dados, calcula probabilidades, oferece respostas rápidas e verossímeis. Mas conhecer vai além de correlações estatísticas. O conhecimento humano nasce de encontros, de silêncios com significado, de olhares que revelam, de contextos que moldam. Como lembrava Paulo Freire, aprender não se limita a ler a palavra; é preciso aprender a ler o mundo.

 

Essa tensão entre a lógica algorítmica e a prática pedagógica não é nova, mas vem se intensificando. De um lado, sistemas prometem eficiência e escalabilidade. De outro, a docência insiste na subjetividade, na incompletude e na escuta atenta. O que a IA constrói é conhecimento correlacional, sem experiência vivida ou engajamento afetivo. Já a sala de aula produz conhecimento situado: emerge do diálogo, da interpretação de sinais sutis — o corpo que se retrai, a pausa que significa e a pergunta que amadurece.

 

Pesquisas mostram que sistemas adaptativos podem personalizar percursos, corrigir erros e identificar lacunas de aprendizagem. E fazem isso com precisão impressionante. Mas tropeçam quando tentam avaliar competências mais complexas, como a sensibilidade estética, o pensamento crítico ou a escrita criativa. É o que alguns chamam de “ilusão de onisciência algorítmica”: a crença de que big data poderia traduzir, sozinho, a riqueza do processo educativo.

 

Onde a tecnologia tropeça

Esse dilema não é exclusivamente brasileiro. Na Coreia do Sul, um estudo com professores revelou o mesmo paradoxo: a maioria reconheceu o valor da IA para personalização, mas criticou a desconexão entre a formação técnica oferecida e as demandas reais da sala de aula. Como resumiu um docente: “Aprendemos a operar sistemas, não a traduzir dados em gestos pedagógicos que reverberam nas histórias dos nossos alunos.”

 

A distância entre teoria e prática se materializa numa pergunta urgente: como transformar relatórios técnicos em decisões pedagógicas que respeitem histórias, tempos e sensibilidades locais?

 

A pergunta que a IA não faz

Um relatório pode registrar “52% de acerto em matemática”, mas só o olhar atento percebe que, por trás desse número, há uma criança que divide o caderno com o irmão enquanto tenta se concentrar apesar do barulho pesado que vem da rua. Ou que aprendeu frações com a avó, cortando pedaços de bolo na cozinha; uma memória que tem cheiro, sabor e afeto.

 

É nesse abismo entre dado e gesto que mora a diferença fundamental: máquinas oferecem sinais; professores constroem sentidos. O algoritmo pode indicar "quem errou a fração"; o professor descobre que o erro veio da receita de bolo feita com a avó, onde a matemática tinha cheiro e sabor. Essa tradução, de número para narrativa, é o que torna os dados pedagogicamente vivos.

 

Esse contraste remete a algo vital: a escola não pode ser reduzida a dashboards. Os dados são úteis, mas não esgotam a vida que acontece em cada canto. O que mantém a educação viva é o que escapa aos gráficos; o insight inesperado, a dúvida que amadurece em silêncio, o gesto de cuidado que não cabe em planilhas.

 

A genialidade educacional mora nas perguntas que a IA não formula: “Quem foi aquela professora de história que te fez se apaixonar pela matéria?”; “O que se passava na sua cabeça quando você entendeu aquela equação que parecia impossível?”. São interrogações como essas, aparentemente simples, que ampliam as possibilidades de ser, viver e conhecer.

 

A máquina não lê entrelinhas. E é justamente nelas que a educação encontra a sua música, aquela melodia invisível que só professores e estudantes sabem compor juntos.

 

Na próxima semana, seguimos esta série olhando para outro dilema: o que acontece quando a inteligência artificial entende que progresso só é possível com velocidade?

 

NOTA:  Esta coluna faz parte de uma série sobre o futuro da educação com inteligência artificial, baseada no livro O Professor Ampliado, que será lançado na Feira do Livro de Porto Alegre. A cada semana, compartilhamos reflexões de capítulos do livro, conectando pesquisas, exemplos e dilemas práticos.

*O livro “O Professor Ampliado” é uma co-autoria de Rafael Parente, Renato Brito e Maria Cristina Mesquita, uma publicação da Cátedra UNESCO da Universidade Católica de Brasília.

 

 Fonte: Zero Hora/Rafael Parente em 18/10/2025