ALCATEIA
“What is the face of a coward? The back of his head, as he run of a battle…”
Frank Underwood – House of cards
Ecoou na mídia mundial e repercutiu com estrondo nas redes sociais: dono de uma das mentes mais brilhantes de nosso tempo, Umberto Eco, o medievalista e grande semiólogo, disse simplesmente que “a internet deu voz a uma multidão de imbecis”.
O assunto da palestra na Universidade de Torino era a crise do jornalismo e a dominância dos novos meios de comunicação. Havia, portanto, um contexto claro, um recorte específico, mas isso passou quase despercebido por milhares de leitores e ouvintes apressados, que dispararam críticas e xingamentos ao autor, o que, ironicamente, só confirma sua frase polêmica.
Eco não ataca o caráter das pessoas que todos os dias emitem opiniões definitivas sobre os mais variados e complexos assuntos, apenas lembra que é uma simples questão de lógica aceitar que existe uma multidão de imbecis em um planeta com mais de 7 bilhões de pessoas. O escritor se vale de um personagem de Jorge Luis Borges para definir o militante da internet – Funes, o memorioso, que lembra tudo, nada esquece, mas nada analisa.
A verdade é que, atualmente, é difícil filtrar ou analisar as enxurradas de informações que nos chegam a cada minuto que abrimos o laptop ou o smartphone. O fato é que o uso intensivo da internet exige discernimento, uma expertise que nem todos adquiriram. O pensamento crítico deveria ser disciplina obrigatória nas escolas e faculdades. Atribuição do Estado? Duvido. Talvez a solução esteja na reinvenção do jornalismo a partir de uma de suas premissas originais: a apuração criteriosa da informação educadora.
Volto a Eco: desconfio que os imbecis a quem ele se refere são aquelas pessoas que fazem coraçõezinhos com os dedos mas não hesitam um minuto em agredir verbalmente e de forma gratuita um desconhecido. Afinal, o sujeito pode ser um bom pai e chefe de família, funcionário exemplar na empresa, mas, no convívio da multidão de outros anônimos, é capaz de agir como um selvagem paleolítico.
Aliás, a internet está repleta de feras, muitas se escondem atrás de perfis falsos, como lobos em pele de cordeiro, outras, envaidecidas com a plateia, vão à loucura em um delírio exibicionista que não conhece limites. A convite deste jornal, há alguns dias, fizemos, o escritor Fabrício Carpinejar e eu, depoimentos sobre a decisão da Suprema Corte Americana de liberar o casamento gay nos Estados Unidos.
Os vídeos (zhora.co/videolovewins) bombaram nas redes e, mesmo tendo como base nada mais nada menos do que a Declaração de Direitos Humanos e sem portar nenhuma bandeira, provocaram a alcateia. Chama a atenção como, mesmo apressadas, ansiosas e incapazes de ir além do título, as pessoas encontraram tempo para expressar sua ira “dita sagrada”.
Segundo o sociólogo Manuel Castells, “a internet não cria, só amplifica”. Neste caso, amplificou “vivas” e “bravos”, mas também as habituais e covardes doses de ódio e homofobia patrocinadas pelo seguro ambiente do anonimato.
São muitas as facetas da nossa impressionante selva online, por exemplo, a tendência das pessoas de se preocuparem muito mais em registrar e publicar o que estão vivendo, do que efetivamente viverem o que estão registrando, está se tornando uma obsessão coletiva. Outro dia, um cidadão – até então – acima de qualquer suspeita, ao presenciar um brutal acidente de trânsito, sacou o celular e passou a filmar vítimas agonizantes. Chegou ao ponto de abrir uma das portas do carro para conseguir um melhor ângulo. Tragicamente não houve sobreviventes e o “cinegrafista” foi preso por omissão de socorro.
Certamente, não sem antes fazer uma selfie.
Sob uma perspectiva otimista, entendo que as barbáries e futilidades presentes nas redes sociais são manifestações de uma sociedade diversa e que, mesmo assustadoras, prestam um bom serviço: revelam covardes e imbecis.
Aos demais, cabe o exercício fundamental da tolerância, única forma possível de convivência.
Fonte: Flávia Moraes/Cineasta(flavia.moraes@gruporbs.com.br)
Jornal Zero Hora/26/07/2015