A AMEAÇA À INTERNET ABERTA.
Para muitos internautas nos países emergentes, Facebook é a internet! Milhões deles não têm a mínima ideia de que estão usando a internet quando acessam o Facebook. Dois estudos recentes mostram que, nesses países, entre 20% e 30% dos usuários do Facebook nem sabem que a internet existe. O que acontecerá com a internet aberta e suas grandes empresas (Google, YouTube, Amazon, eBay, LinkedIn, etc.) se as pessoas usam a internet somente no contexto do Facebook?
Já em 2010, quando eu era vice-presidente da divisão de países emergentes do Google, eu afirmava que o crescimento do Facebook sem que as pessoas se tornassem usuárias de toda a internet era uma anomalia que traria um grande risco para a internet aberta (e, assim, também para o Google). Infelizmente, os presidentes do Google, como a maioria dos americanos, continuavam a olhar somente o que acontecia nos Estados Unidos e achavam que essa era a realidade no mundo todo: uma internet aberta com neutralidade de rede se fortalecendo e crescendo constantemente. Americanos abraçavam toda a internet utilizando serviços de várias empresas. O crescimento incentivava a inovação e a criação de novos serviços, o que tornava a internet aberta cada vez maior e mais forte, aumentando os incentivos a novos serviços. Qualquer um (mesmo o estudante no dormitório ou garagem) podia criar novos produtos e soluções para a internet aberta e, do dia para a noite, oferece-los ao mundo todo. Uma vez que todas as pessoas online eram usuárias da internet, qualquer novo produto estava disponível a todos, sem nenhum esforço extra. Executivos americanos não acreditavam que a “poderosa” internet aberta e o Google “imbatível” pudessem correr qualquer risco.
Hoje, cinco anos mais tarde, a realidade é bem outra, pois como eu previa, o número de usuários do Facebook que não usam o resto da internet só cresceu.
Isso se deu porque, nos países emergentes, a situação se desenvolvia (e ainda se desenvolve) de forma bastante diferente. As pessoas adotavam a internet para se comunicar nas redes sociais. Nesses países, as operadoras de celulares, para adquirir novos clientes, “seduziam” os usuários a usar somente Facebook (ou WhatsApp, que pertence ao Facebook) e nada mais, Ofereciam planos para o acesso ao Facebook por um quinto do preço dos planos com acesso a toda a internet. Para usuários de telefones básicos, ofereciam o plano Facebook Zero, que permitia o acesso ao Facebook sem nenhum custo. E criaram telefones especiais com um grande “F” como o botão central, que, quando apertado, leva o usuário diretamente ao Facebook.
Vendo a oportunidade de dominar a internet, o Facebook deu o passo seguinte criando a internet.org: uma iniciativa para “trazer a internet para os dois terços da população do mundo que não a têm”. A internet.org, que já está disponível em alguns países, oferece acesso gratuito apenas ao Facebook, ao Facebook Messenger e a poucos outros serviços. As únicas concessões à Web mais ampla são Wikipédia e pesquisa no Google. Porém, a consulta ao resultado da busca no Google requer um plano com acesso à internet que, obviamente, tem que ser pago pelo usuário. Para que serve a busca sem poder acessar seus resultados?
Enfim, estamos vendo a fragmentação da internet onde muitos internautas são apenas usuários do Facebook ou WhatsApp.
E as consequências disso são grandes! Com a entrada de bilhões de novos usuários dos países emergentes no mundo digital, a maioria dos usuários da internet passou a ser desses países, e, com isso, as expectativas e comportamentos deles definirão a forma como a internet evoluirá.
Se a maioria das pessoas utiliza somente o Facebook, veremos a migração de serviços da internet aberta para o Facebook. Todo o conteúdo, anunciantes e serviços associados fluirão para o Facebook, com a exclusão de outros, tornando a inovação e a entrada de novas empresas bem mais difícil. Hoje mais da metade das pessoas que não sabem que estão usando a internet quando estão no Facebook nunca segue links para fora do Facebook e, desta forma, nunca descobre novos serviços da internet.
Se mais e mais pessoas se comunicam somente através do Facebook e WhatsApp, qual será o futuro dos sistemas de e-mail de Yahoo, Hotmail ou Google?
Vemos uma migração das interações através dos websites de órgãos públicos, empresas, startups, organizações sem fins lucrativos, jornais e qualquer outra pessoa ou organização interessada em se comunicar com a maioria das pessoas para o Facebook, pois todos não têm escolha a não ser ir aonde as pessoas estão. Como resultado, as interações crescem no Facebook, enquanto o tráfego nos websites cai. Guardian, BBC, Telegraph e muitos outros jornais estão vendo o impacto. O tráfego direto no site do New York Times, por exemplo, caiu 50% em dois anos porque as pessoas estão passando mais tempo no Facebook. Já 30% dos americanos obtêm notícias no Facebook. Se websites estão migrando para o Facebook, qual será a relevância do sistema de busca do Google no futuro?
E as consequências não acabam por aí! Hoje, Facebook é responsável por somente 2,5% do tráfego de sites de e-commerce no Brasil. Sistemas de busca geram 34,6%. Se as buscas se forem, como os sites de e-commerce sobreviverão? O volume de criação de vídeos no Facebook já é maior do que no YouTube. O que será do YouTube (também do Google) ou da Netflix em alguns anos?
O pior é que, diferentemente de muitos outros serviços da internet, é difícil “abandonar” o Facebook, pois seus contatos, fotos, conteúdo, etc. estão todos lá. Assim, uma vez usuárias ativas do Facebook, as pessoas estão “presas” a ele.
Do jeito que as coisas estão indo, em alguns anos, todos nós e todos os serviços da internet estarão seguindo as regras do Facebook em vez das regras da internet aberta, que não pertence a ninguém. E isso, como vimos, terá grandes implicações, pois ficaremos todos presos a um único fornecedor.
Mas tenho certeza de que hoje os presidentes do Google e das várias outras potências da internet estão quebrando a cabeça para reverter isso, tentando aumentar o uso de toda a internet aberta em vez da internet “fechada”, que só existe dentro do Facebook e é controlada por ele. Vai ser interessante observar o que acontecerá com a internet e suas grandes empresas nos próximos anos. Pena que não me escutaram em 2010, quando o Facebook era ainda minúsculo!
Fonte: ZeroHora/Nelson Mattos-Doutor em Ciências da Computação (nelson.m.mattos@gmail.com) em 04/10/2015.