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Carlos Drummond de Andrade e A Rosa do Povo
Carlos Drummond de Andrade e A Rosa do Povo

A FLOR, A NÁUSEA E O NOSSO TEMPO

 

É curioso e revelador que Drummond tenha escolhido dois poemas que tratam do fazer poético e do sentido da palavra para apresentar seu volume de poemas A ROSA DO POVO.  Publicada em 1945, em meio à dura realidade da II Guerra Mundial, a obra marca a vinculação do autor com as questões do tempo de então – um tempo que não é só individual, mas coletivo no país e no mundo.  Há uma questão firme no livro: se o poema nasce da palavra para falar do mundo (“Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos”), quais são as palavras que falam em um mundo de conflito e disputa?

 

O próprio poeta sugere uma resposta no poema A FLOR E A NÁUSEA, em que o sujeito atravessa a materialidade de um mundo carente de significado: “Preso à minha classe e a algumas roupas, / vou de branco pela rua cinzenta. / Melancolias, mercadorias espreitam-me. / Devo seguir até o enjoo?”.  A angústia surge na inevitabilidade de um tempo que “é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera”.  O eu-lírico sugere que é sob a aparência das coisas que estão seus significados e seu valor:  “Sob a pele das palavras há cifras e códigos. / (...) Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.”  O sujeito naufraga sob uma apatia tóxica constituída pela classe, pelo trabalho, pelo consumo e pela odiosa perspectiva dessa permanência:  “Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918 chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim”.  Aqui, o poema adquire outra coloração e o desprezo pela rua cinzenta transforma-se em encanto: “Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego / Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia, rompe o asfalto”.  Há uma delicadeza no mundo oculta sob a superfície de significados unidimensionais, que é, porém, forte e incoerente: “É feia.  Mas é uma flor.  Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, encerra, sugerindo que a beleza reside não no objeto em si, mas no valor que lhe é atribuído.

 

Talvez este eu-lírico possa ser emprestado ao nosso tempo: e de que tempo escreve Drummond?  “Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos. / (...) Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. / As leis não bastam.  Os lírios não nascem / da lei.  Meu nome é tumulto, e escreve-se / na pedra”.  Nosso tempo descreve um tempo de revolta, de palavras duras e enérgicas, de sociedade cindida em incerteza e ódio.  O poema espelha, assim, o tempo atual: o tempo da indelicadeza que oculta a flor sob o asfalto.

 

O asfalto, o tédio, o nojo e o ódio são os elementos simbólicos que abafam a subjetividade sobre a qual cresce o afeto.  A ROSA DO POVO nos ajuda a perceber a História em curso e nos faz refletir sobre a sociedade e as pessoas, as palavras e nos significados, e nos sugere que a mais profunda e prejudicial crise não é política nem econômica, mas afetiva - é a afetividade que cria os laços agregadores entre os indivíduos da sociedade. Uma reflexão emergencial para entender o Brasil em seu tempo de revolta, divisas e escuridão.

 

 

Fonte:  ZeroHora/Vitor Diel (Autor de Granada (2008) e editor da página Facebook.com/literaturars em 22 de maio de 2016