A BAGAGEM DO VIAJANTE
Um resgate das passagens de José Saramago por Porto Alegre, onde uma exposição em cartaz no Farol Santander organiza a vida e a obra do escritor português segundo seu próprio ponto de vista
No último terço de sua vida, o escritor José Saramago decidiu seguir de modo integral o que considerava sua verdadeira vocação: a literatura. O sucesso de seus livros permitiu que ele exercesse outra vocação, a de viajante, perambulando em andanças que o levaram a conhecer boa parte do mundo – inclusive Porto Alegre.
Parte dessa trajetória está documentada na exposição SARAMAGO: OS PONTOS E A VISTA, uma mostra que atualmente (ocupou de julho a setembro) ocupa um espaço de mil metros quadrados no Farol Santander e se organiza em módulos em que Saramago é mostrado em vídeo discorrendo sobre temas específicos – imagens gravadas originalmente por Miguel Gonçalves Mendes para a produção do premiado documentário JOSÉ E PILAR (2010). Em um desses módulos, está reproduzida uma entrevista concedida ao jornalista Juremir machado da Silva, então repórter de Zero Hora, durante sua primeira visita à cidade, em 1989, para participar do 1º Congresso Estadual de Cultura, organizado pelo Conselho de Desenvolvimento Cultural do Estado. “Escrevo como se fala. E direciono-me mais para a natureza do que para a sofisticação. Vim do povo e sei como ele sente e pensa. São histórias que se contam e ouvem que coloco em meus romances”, dizia o escritor ainda não nobelizado. Foi a primeira de uma sequência de seis passagens pela Capital, entre 1989 e 2005. Como lembrar a ZH Pilar del Río, esposa de Saramago, na abertura da exposição, em julho deste ano:
- Existia uma relação consolidada entre Porto Alegre e Saramago, de lugares e amigos. Saramago visitou a universidade (UFRGS) andou pela cidade e pelos arredores, manteve correspondências com professores.
LÍNGUA E POLÍTICA
A primeira visita foi realizada em abril de 1989, como parte de um congresso estadual de cultura que, na esteira da redemocratização e da ainda recente Assembleia Nacional Constituinte, pretendia elaborar parâmetros de uma política estadual para a área. “Uma espécie de Constituinte da Cultura no Estado”, segundo o historiador Décio Freitas (1922-2004), um dos organizadores. Na práticas, o encontro teve momentos tumultuados, como uma sessão que terminou com atrito entre a plateia e os debatedores e na qual ainda se discutiam pautas como se havia diferença na produção de um artista gaúcho se ela era realizada fora do Estado. Saramago, que estava lançando HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA, encerrou o evento falando no Salão de Atos da UFRGS sobre a cultura de língua portuguesa, fez o elogio da diversidade mesmo dentro de identidades nacionais e disse considerar um desvario que se reforçassem as diferenças entre os sotaques diversos de portugueses e brasileiros em vez de se exaltar o fato de povos diferentes darem usos diversos para a mesma língua. Diferentemente dos atritos anteriores, Saramago teve uma audiência atenta a cada uma de suas palavras, experiência que se repetiria em todas as suas visitas à cidade.
- Além de ser um revolucionário na escrita de língua portuguesa, ele tinha uma habilidade de comunicação fantástica, falava ao coração do público e a empatia da audiência era imediata – relembra Donaldo Schüler, um dos participantes daquele congresso.
A memória mais viva que Donaldo Schüler guarda do escritor português, contudo, está ligada à visita seguinte do autor, ocorrida em agosto de 1992, também no Salão de Atos da UFRGS. Saramago foi um entre muitos convidados no seminário internacional A Experiência do Século, realizada em Porto Alegre pela Coordenação do Livro e Literatura da Secretaria Municipal de Cultura. A lista incluía também nomes como Francisco Weffort, Pierre Broué, Marilena Chauí e Sérgio Paulo Rouanet.
- Participava desse seminário também o Francis Fukuyama, que tinha na época um livro com uma ideia absurda que era moda, que versava sobre o Fim da História com a queda do comunismo. Quando Saramago falou, ele contestou com vigor essa ideia, e teve grande acolhida por parte da plateia – diz Donaldo.
A memória é compartilhada por outro Schüler, o filósofo Fernando Schüler, então coordenador do livro e da literatura e organizador do evento:
- Foram discutidos durante aquele momento temas que estavam em pauta, como as transformações na Europa com a queda do Muro de Berlim, o fim da União Soviética e a crise do socialismo. Enquanto Fukuyama via aquilo como uma redenção da democracia e da política liberal, o Saramago via como uma derrota. E ele respondeu com um humor muito ferino em uma palestra sóbria, muito elegante. É surpreendente lembrar disso neste momento de debate político tão envenenado e cristalizado em oposições.
A CONSAGRAÇÃO
Em 1989, Saramago já érea um dos maiores nomes da literatura portuguesa, mas no Brasil seu prestígio ainda era restrito aos círculos acadêmicos. Em 1992, já havia publicado, pouco tempo antes, O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO, obra que o tornaria célebre também junto ao público brasileiro. Quando Saramago retornou em abril de 1997, para um novo evento na UFRGS, ele já era o escritor português vivo mais famoso no Brasil. Havia lançado o bem-sucedido ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA e estava finalizando TODOS OS NOMES quando dividiu a mesa no Salão Nobre do Instituto de Biociências com o também português Helder Macedo e a cabo-verdiana Orlanda Amarílis (1924-2014), no seminário Literatura & História: Três Vozes de Expressão Portuguesa.
- Ele estava sentado na plateia, acompanhando o seminário, e houve um momento em que o procurei para avisar que havia uma equipe de TV que gostaria de falar com ele. Ele me disse: “Só depois desta fala. Se quero que me escutem, tenho que saber escutar”. Aquilo me impactou e foi uma lição pessoal e profissional, inclusive – recorda Édina Rocha, jornalista e hoje vice-secretária de Comunicação da UFRGS.
Saramago realizou naquela mesma noite de 11 de abril uma anotação em seu diário sobre a experiência, mais tarde publicado no segundo volume de seus CADERNOS DE LANZAROTE:
“Assistentes em grande número, sessões animadíssimas. Orlanda Amarílis, tal como eu, pertence ao grémio dos improvisa-e-logo-verás-aonde-chegas, mas não lhe perguntei se, como eu, experimentou uma picada de inveja (inveja sã, tingida de rendida admiração) ao ouvir a comunicação de Helder Macedo: quanto eu gostaria de ser capaz de falar dos meus livros com a finura analítica e a visão perspectiva com que Helder discorreu sobre o seu romance PARTES DA ÁFRICA”.
As impressões provocadas pela passagem de Saramago costumam ser semelhantes: um homem muito inteligente, ainda que reservado, bastante consciente da própria inteligência, a ponto de passar uma impressão de arrogância algumas vezes. Com maneiras de um cavalheirismo sóbrio misturadas a um humor ferino que se deixava manifestar com franqueza quando ele estava em desacordo com algo. A hoje vice-reitora da UFRGS Jane Tutikian, que também participou do encontro como professora do Instituto de Letras, lembra que a convivência entre Saramago e Orlanda Amarílis foi uma espécie de “encontro de mundos”: o português ateu, materialista e racional, e a cabo-verdiana sincrética, formada por uma cultura em que o misticismo tem papel importante:
- Estávamos no café da manhã e Amarílis, que havia sido casada com o primeiro historiador da literatura das antigas colônias, Manuel Ferreira, chegou e contou que havia tido uma visão do marido, já falecido. “Esta noite apareceu-me Manuel Ferreira. Ele estava todo iluminado”. “Orlanda, o fato de você ter visto não quer dizer que tenha acontecido”, respondeu Saramago – relembra.
O SÁBIO
A proximidade recorrente de Saramago com a UFRGS foi reconhecida em sua quarta visita à cidade, em abril de 1999, para receber o título de4 doutor honoris causa. Já então mundialmente aclamado com o Nobel, Saramago fez um discurso sóbrio seguido por um improviso reflexivo em que fazia o elogio da universidade como um lugar em que os estudantes não precisavam esperar a velhice para se tornarem sábios, algo que Saramago não reivindicou textualmente ser, mas que outros afirmam que ele era.
- As passagens dele por Porto Alegre sempre foram muito ricas. Ele era sempre muito respeitoso como todo mundo, não só na academia, mas com quem falava com ele de modo geral. Ele sabia escutar quando alguém falava. E, ao mesmo tempo, quando falava em público, era um silêncio enorme da plateia. As pessoas queriam ouvir e beber as suas palavras – recorda a professora Wrana Panizzi, reitora da UFRGS na época da concessão do título.
Saramago voltaria mais duas vezes, uma delas para autografar seu romance A CAVERNA, em uma palestra em 2000 no Teatro da Ospa – foi apresentado pelo colega e amigo Moacyr Scliar (1937-2011), a quem encontrava na cidade desde sua primeira vinda, em 1989. Scliar afirmou que a essa altura, Saramago já tinha um caso de amor com Porto Alegre, tantas foram as vezes que estivera na Capital. O português vinha em uma maratona de lançamentos do livro no Brasil, mas revigorou-se em Porto Alegre, onde manifestou bom humor cordial e fez piadas durante a palestra.
Outro amigo que Saramago veio encontrar em Porto Alegre, desta vez em janeiro de 2005, em sua última estada, foi o uruguaio Eduardo Galeano, com o qual dividiu um painel durante a edição daquele ano do Fórum Social Mundial. Já então, embora nunca tenha se afastado de suas convicções comunistas, Saramago tinha de exercer certa diplomacia em um evento em que boa parte das esquerdas mais jovens e radicais verbalizava sua insatisfação com a condução do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não por causa de escândalos como o Mensalão, que só estourariam mais tarde naquele ano, mas por seu conservadorismo na condução da política econômica.
- Lembro de comentar que ele tinha algo do Álvaro Cunhal, líder do partido comunista português, que era tido como stalinista, silenciou durante a revelação dos crimes do stalinismo, mas que todo mundo reconhecia como um homem reto, com uma decência que não se deixava dobrar. O Saramago era um pouco assim, personagem fascinante, um intelectual vindo do povo e que alcançou o Nobel mas seguiu sem deslumbramento com os holofotes que ganhou – analisa o professor da UFRGS Luís Augusto Fischer.
Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno Doc/Carlos André Moreira (carlos.moreira@zerohora.com.br) em 01/09/19