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A Poesia em Sophia de Mello Breyner
A Poesia em Sophia de Mello Breyner

 

A POESIA EM SOPHIA DE MELLO BREYNER

 

A poetisa Sophia de Mello Breyner, nascida no Porto em 1919, de origem dinamarquesa pelo lado paterno e educada num meio aristocrático, foi uma mulher que esteve muito cedo ligada à luta antifascista e, a seguir ao 25 de Abril, foi deputada à Assembleia Constituinte. Os seus principais poemas de resistência política foram reunidos na Antologia Grades (1970), sem prejuízo de a aspiração à liberdade e à justiça impregnarem toda a sua obra, como uma ética poética que lhe fosse natural.

 

Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999 e desde 2014 está no Panteão Nacional. Uma mulher para quem "A poesia é das raras actividades humanas que, no tempo actual, tentam salvar uma certa espiritualidade”. Afirmou mesmo que “A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma – quer a essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou beleza." 

 

As suas influências vão dos clássicos gregos (O culto pela arte e tradição próprias da civilização grega são lhe próximos e transparecem pela sua obra ("O Rei de Itaca", "Os Gregos",  “O Nome das Coisas”"Crepúsculo dos Deuses”) à grande tradição portuguesa de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa. A relação com a poesia brasileira também é decisiva. Destacam-se os diálogos com Cecília Meireles, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. A sua poesia revela uma grande fidelidade à realidade do mundo em que vivemos, e é a sua palavra poética que servirá de agente da transfiguração da realidade, fazendo surgir um mundo harmonioso. A observação da realidade exterior, do presente caótico, faz despertar na poetisa a esperança de uma nova realidade, baseada em valores como a justiça, a verdade e a igualdade.  Ela ficou conhecida como a poetisa da positividade ou da luminosidade mas, ao mesmo tempo, mostrou um inconformismo com a banalidade do mundo quotidiano, do qual ela se mostrou exausta. Na verdade, na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, encontramos, com frequência, inúmeros espaços a demarcarem uma interação específica entre homem e cosmos.

 

Porém, a poetisa portuguesa irá eleger, ao longo de sua obra, a paisagem, a terra, e sobretudo o mar para ocuparem lugar central na sua poesia, com imagens que geram belas composições de carácter pictórico. Por outro lado, a cidade aparece como um espaço de dor, limite e perda, mas também de luta e compromisso. E é nos quatro elementos primordiais – terra, água, ar e fogo – que Sophia busca não só a beleza poética, mas essencialmente o reencontro e a comunhão com o primitivo e a verdade das origens. É então na natureza (elemento de purificação) que encontra a perfeição e a harmonia que tanto deseja encontrar entre os homens. Deste modo, a natureza é o espaço primordial, onde a poetisa reencontra as suas origens, por oposição à cidade que, tal como disse anteriormente é o local de conflitos e desencontros, aquela que representa o mundo frio, artificial, hostil e desumanizado, o contrário da natureza e da segurança.

 

Desde o livro de estreia, Poesia, de 1944, Sophia de Mello Breyner Andresen anunciava as principais características da sua arte poética: um rigor clássico traduzido numa enorme simplicidade de linguagem para dizer a aliança do ser com o mundo através de imagens nítidas como a terra, o sol e o mar. Estas qualidades estão presentes em toda a sua fulgurância, a par de um amadurecimento formal. A sua busca foi indiferente a escolas, correntes ou modas, (talvez porque, como ela bem disse, “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso”). Para a poetisa, a poesia compromete-se com o mundo exterior, interiorizando-o e retransmitindo-o. Há uma reconstrução da aliança com a natureza e com as coisas numa procura de harmonia e pureza. Nestes elementos Sophia busca a beleza poética, o fascínio, a meditação, o reencontro e a comunhão com o primitivo, com as origens.

 

Para ela, a natureza é um espaço primordial, onde o “Eu” se reencontra com a sua nudez e beleza plena, fugindo da cidade. Segundo Sophia, as cidades são espaços negativos, de conflitos e desencontros. A poetisa procura, acima de tudo, a transparência, o universo organizado, daí a reconstrução da aliança entre os homens, a natureza e as coisas ser uma constante na sua obra. O acto poético é um acto mágico capaz de projectar, por palavras mágicas, a realidade e a relação íntima com as coisas, com o Universo.

 

Sophia busca a perfeição e a harmonia de um ser humano que saiba erguer-se a partir das suas limitações e imperfeições. Não celebra os deuses para que os homens sejam como eles, mas celebra os Deuses para tornar os homens mais divinos, capazes de avançar para a margem do Bem e da Verdade. O mundo antigo, a que recorre a poetisa, simboliza não só as origens, mas também a perfeição e a unidade ou o tempo absoluto que procura.

 

Sempre a poesia foi para ela uma perseguição do real. Está presente em Sophia também uma ideia da poesia como valor transformador fundamental. E se a sua poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor. Sophia afirmou um dia o seguinte: "Recordo-me de descobrir que num poema era preciso que cada palavra fosse necessária, as palavras não podem ser decorativas, não podiam servir só para ganhar tempo até ao fim do decassílabo, as palavras tinham que estar ali porque eram absolutamente indispensáveis".

 

E é por isso que a poesia é, para ela, uma moral, em que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a sua obra poética. A moral de um poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês, a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona, a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que não pode aceitar uma ordem falsa.

 

Ela foi, sem qualquer dúvida, um caso ímpar na poesia portuguesa, não só pela difusa sedução dos temas ou pelos rigores da expressão, mas sobretudo por qualquer coisa, anterior a isso tudo, em que tudo isso se reflecte: isto é, uma rara exigência de essencialidade.Se avaliarmos bem o que direi de seguida, conseguiremos muito bem avaliar o que a Poesia era para esta mulher que, acredito, todos nós sentimos orgulho por tão bem representar a Literatura Portuguesa e, sobretudo, a Poesia nacional ao mais alto nível. Então, sobre a Poesia, Sophia disse uma vez o seguinte e gostava que saboreassem a maravilha destas palavras:

 

«A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta. Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala duma vida ideal mas sim duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.”

 

Chamo-Te

 

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio

E suportar é o tempo mais comprido.

 

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,

Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.

 

Há muitas coisas que não quero ver.

 

Peço-Te que sejas o presente.

Peço-Te que inundes tudo.

E que o Teu reino antes do tempo venha

E se derrame sobre a Terra

Em Primavera feroz precipitado.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

 Por João Bernardino