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José Saramago por Paulo Ricardo K. Angelini
José Saramago por Paulo Ricardo K. Angelini

NOBEL DE LITERATURA – 20 ANOS

 

A OUTRA COISA DE JOSÉ SARAMAGO E OS GRITOS DO MUNDO

 

Nas dobras da escrita, traços que trazem outras palavras, ali escondidas, ali gritadas, no entre aspas ou nos seus silêncios. Palavras que se levantam contra o esquecimento e se mostram novas matérias. Nova semente, levantada do chão. Todo texto desperta outras vozes, vozes que vieram antes, vozes que virão depois. José Saramago disse que toda a literatura é um palimpsesto (como aliás também o disse o teórico Gérard Genette). Ou seja, toda a obra convoca outras obras, dialoga com elas e delas se faz, delas se refaz.

 

O consistente percurso do escritor José Saramago muito se vale desse constante diálogo com textos outros. É difícil, por exemplo, lermos José Saramago e não enxergarmos todo um tecido composto de outros autores que, como ele, produziram textos desestabilizadores, que demandam um leitor ativo em processo de decifração. Shakespeare, António Vieira, Almeida Garrett, Machado de Assis, Fernando Pessoa, entre dezenas de outras vozes, passeiam pelos bosques saramaguianos e de lá saem corporificados em uma narrativa que, tal qual seu personagem Pedro Orce, de A JANGADA DE PEDRA, faz a terra tremer sob nossos pés.

 

Nascido em 1922, numa pequena aldeia distante cerca de 100 quilômetros de Lisboa, autodidata que só teve nos avós maternos o exercício da afetividade, Saramago mergulha num grande silêncio literário depois que sua segunda obra fica esquecida nas gavetas da burocracia editorial. O livro inaugural e anterior, TERRA DO PECADO, de 1947, ainda não trazia o Saramago que conheceríamos. Nem CLARABOIA, o tal segundo livro desprezado, enfim lançado depois de sua morte, quase 60 anos após ter sido enviado à editora. Porque é apenas nos anos 1980 que entra em cena o narrador José Saramago, digressivo, filosófico, contestador, falastrão. É nos anos 1980 que se configura o jeito de narrar inconfundível de José Saramago. Com LEVANTADO DO CHÃO, Saramago trata de construir sua famosíssima voz narrativa, ocupando os silêncios de uma História, assim, com H maiúsculo, que exclui os desfavorecidos. E porque “tudo isto pode ser contado doutra maneira”, saramago o faz. A arte de narrar construída a partir desta obra ou a possibilidade de dar voz àqueles que nunca a tiveram cabem ambas na esteira desta correção da estória/História. E assim, trabalhadores do Alentejo no círculo sem fim da miséria, a escravidão e a violência na construção do Convento de Mafra, a recusa dos Cruzados em ajudarem os portugueses a expulsarem os mouros de Lisboa, os dilemas de Jesus Cristo entre Deus e o Diabo, a cegueira branca que primitiviza o homem, são fios condutores que têm em comum personagens populares, não raro marginalizados, que invertem a lógica da hierarquia social protagonizam suas próprias histórias.

 

Foi este conjunto de livros, compreendido em uma fase luminosa, celebrado por leitores, críticos e acadêmicos. Até mesmo o ranzinza Harold Bloom, no início dos anos 2000, chegou a dizer que era Saramago o maior escritor vivo. Assim, a partir da experiência com o narrador de LEVANTADO DO CHÃO, seguiram-se obras amplamente festejadas e estudadas. MEMORIAL DO CONVENTO, O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA, ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, A JANGADA DE PEDRA, entre outros, compuseram uma sólida carreira literária, trazendo junto a certeza de uma iminente premiação junto ao Nobel, que veio em 1998. José Saramago ainda é, hoje, o único autor de língua portuguesa vencedor deste prêmio.

 

Boa parte da crítica, aliás, observa uma mudança de enfoque em seus livros, a partir de ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA. Se os seus antecessores tinham em Portugal o chão narrativo, com propostas mais históricas, a partir de 1995 o autor universaliza-se, tecendo suas fabulosas narrativas com viés ainda mais filosófico. De comum em ambas as fases, o homem simples do centro do enredo, um homem que precisa lutar contra as engrenagens de um sistema capitalista opressor, massificante, cujas estruturas inviabilizam um pleno viver. Porque Saramago foi um crítico feroz da Igreja, do Estado, do capitalismo, denunciado as desigualdades sociais e seus desdobramentos.

 

Teve, é bem verdade, sempre muito cuidado para não transformar sua obra em panfleto revolucionário. Ainda que tenha dito que toda “a atividade literária pode ser também uma ação política”, dizia igualmente que a literatura não era um compromisso em si mesma. Para o autor, o prodígio da literatura era “poder ser capaz de chegar mais fundo na consciência dos leitores, mesmo falando sobre uma outra coisa”. E era essa outra coisa o que nunca faltou nos textos saramaguianos. Acreditava no poder transformador da arte, da literatura, mas pensava que o ponto central para uma transformação na ordem mundial era uma real política afetiva com o outro. Um olhar solidário.

 

Em tempos de discursos que resgatam torturadores, que demonizam direitos humanos, que relativizam as ditaduras, não tenhamos dúvidas: José Saramago seria mais um a se levantar contra essas novas lideranças tão concatenadas com o ultraconservadorismo. E talvez por isso, seria mais um ingressar no rol de pessoas não gratas, uma vez que nunca se poupou a dizer tudo o que pensava, chegando a abandonar Portugal e passar o resto de sua vida na ilha espanhola de Lanzarote, especialmente quando seu livro EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO não foi sequer indicado pelo governo português a um prêmio europeu de literatura, por atentar contra “o patrimônio religioso dos portugueses”, segundo nota oficial. O escritor português retrucou: “Se tivesse vivido no século XVII, não escapava da fogueira”.

 

Por certo. Mas antes, transformaria mais essa injustiça em uma história a ser contada, com todos os gritos de um mundo já há muito desregulado. Porque basta abrirmos um livro de José Saramago para escutarmos todas essas vozes que são, sistematicamente, alvo de censura, de perseguição, de silenciamento.

 

Para que nunca se calem, ouçamo-las.

 

Fonte: Correio do Povo/CS/Paulo Ricardo Kralik Angelini/Professor nos cursos de Letras e Escrita Criativa da PUCRS em 22/12/2018.