A escritora Ceres Marcon entrevista o escritor Christopher Kastensmidt
“Dizem que quando Christopher Kastensmidt nasceu na cidade de Houston, Texas, as palavras do médico foram: “Houston, temos um problema!”
Christopher cresceu e estudou nos EUA, mas eventualmente encontrou seu lugar no Brasil. Ele deixou um trabalho altamente remunerado de engenheiro na Califórnia para se juntar com uma empresa de games em Porto Alegre, na época sem faturamento. A maioria das pessoas o achou meio estranho por aprontar uma coisa dessas, mas até hoje não existe prova definitiva da sua loucura.
No final, deu tudo certo. Ele trabalhou dez anos como sócio-diretor da empresa gaúcha de games Southlogic Studios, onde ele negociou dezenas de contratos com empresas estrangeiras e participou da criação de mais de trinta games nos cargos de diretor criativo, game designer, produtor, roteirista e outros. Ele trabalhou algum tempo como Coordenador de Estúdio e Diretor Criativo da Ubisoft Brasil, mas hoje em dia ele escreve, dá aulas na UniRitter e palestra dentro e fora do Brasil sobre narrativas, games, letramento digital e criatividade.
Ao longo desta jornada, ele conheceu sua mulher Fernanda e eles tiveram um menino que se chama Lynx.
Chris começou a inventar histórias antes mesmo de escrever, quando recebeu um gravador de fita cassete, mas só começou a publicar profissionalmente a sua ficção em 2005. Desde então, as histórias e poemas do Christopher já foram publicados em doze países, e ele foi finalista do Prêmio Nebula, o “Oscar” da literatura fantástica, em 2011 e finalista do Prêmio Argos, dado pelo Clube de Leitores de Ficção Científica, em 2014.”
1- Gostaria de começar perguntando a você, Christopher: como você se define, ou melhor, quem é o Christopher?
É uma boa pergunta. Às vezes, a sociedade altera a percepção de si mesmo. Passei anos como estudante, engenheiro, empresário, professor e agora, escritor. Em cada situação, a sociedade exige um certo tipo de comportamento, e acabamos conformado àquele comportamento, pelo menos até certo ponto.
Para mim, porém, continuo aquela mesma criança geek que gosta de literatura fantástica, de jogar, de conversar sobre assuntos nerd com os amigos. O bom é que, de todos os papeis que cumpri até hoje, o de escritor é que dá a liberdade de ser eu mesmo, de encontrar muitas pessoas com interesses parecidos e de expressar as minhas ideias e sentimentos.
2- Dá para separar o autor e escritor Christopher, do homem marido, pai Christopher?
Sempre tentei separar as coisas, mas fica cada vez mais difícil. Online, tento dar mais foco nas obras do que no autor. Por isso, tenho um site da minha série (A Bandeira do Elefante e da Arara), mas não um site de “Christopher Kastensmidt”. Nas redes sociais, tento expressar a minha vida pessoal mais que a imagem pública. Por exemplo, nunca coloco uma foto de um livro na minha foto de perfil. Ao mesmo tempo, a minha vida pessoal é cada vez mais tomada por eventos, lançamentos, palestras e visitas escolares. Acaba sendo que a maioria das notícias “pessoais” que tenho para compartilhar tem cada vez mais a ver com a minha carreira. Assim mesmo, os meus amigos de longa data começaram a ligar a minha pessoa com a minha produção narrativa, a me saudar como “escritor”. É um processo estranho, talvez inevitável, mas como falei antes, como “Christopher, o autor” ou somente Christopher, consigo me expressar da mesma forma.
3- Dos games à Literatura. Como se deu essa “simbiose”?
Na verdade, a minha paixão pela literatura brotou bem antes da minha conexão com games. Sonhei na minha adolescência em ser escritor, mas nunca imaginei me tornar desenvolvedor de games. A oportunidade de trabalhar com games apareceu por acaso, em uma época que eu trabalhava como engenheiro. Após fazer a troca, acabei trabalhando quatorze anos na indústria, participei da criação de trinta games e dirigi o que chegou a ser a maior empresa de games do país. No final, larguei tudo para poder focar mais na carreira de escritor, mas não me arrependo de nada. A minha carreira de games influencia a maneira que trabalho com as narrativas. Não me limito a nenhuma mídia específica para contar as minhas histórias.
4- Em sua entrevista para o site O Escriba Encapuzado, você cita sete coisas que aprendeu nessa jornada para se tornar um escritor. Na lista, os cinco primeiros itens: paciência, paciência, paciência, paciência e paciência; humildade é o segundo e felicidade é o último. Você continua a manter essa ordem? Por quê?
Escrevi essa lista para o escritor iniciante. O que mais faz falta nos escritores iniciantes é ter a paciência para desenvolver a arte. Não é suficiente escrever apenas um livro para se tornar um escritor, tem que escrever vários. Eu gastei dez anos na aprendizagem, escrevendo e publicando ficção curta, antes de fazer meu primeiro grande lançamento comercial: A Bandeira do Elefante e da Arara: O Encontro Fortuito.
A fase de aprender a paciência já passou, agora encontro-me em outra época da carreira. Agora meu mantra é “produzir, produzir, produzir”. Tenho oportunidades por todos os lados, por isso não posso deixar de criar. Daqui para frente, espero lançar um ou dois projetos narrativos por ano. Isso não quer dizer apenas livros, mas também games, quadrinhos, filmes e outros.
5- O que mudou no Christopher, escritor iniciante, para o Christopher, escritor experiente de hoje?
Quase tudo. Em 2003, eu era um novato sem noção. Felizmente, não demorei muito em dar conta que eu precisava estudar muito (só não tinha noção de quanto). Gastei inúmeras horas na leitura e na escrita, e muitas pessoas me ajudaram e influenciaram ao longo do caminho. Devo muito a eles. Durante este mesmo tempo, terminei um mestrado e tive um filho. A minha vida mudou de forma radical.
Agora sou um profissional competente com outra visão do mundo. Ao longo desta jornada, todos os meus planos e expectativas mudaram. Por exemplo, estou mais focado no mercado brasileiro neste momento do que no mercado internacional.
6- O que você valoriza em um texto literário?
Eu, em geral, busco contar uma boa história, deixar a imaginação voar. Por isso, utilizo um estilo que expõe as ideias de forma clara. Construo imagens com os significados das palavras e não me preocupo em escrever um “belo” texto, criar arte com as palavras. Isso não quer dizer que nunca brinco com textos mais artísticos. Ofereço esta história : Dragon Dreams on Cardboard Wings and Tiny Scraps of Yellow(em inglês) como exemplo, uma história que foi bastante elogiada pelos críticos.
7- Você trabalha com o Folclore Brasileiro em varias de suas obras. Um dos últimos livros A Bandeira do Elefante e da Arara. Por que você escolheu trabalhar com o Folclore Brasileiro?
Engraçado é que, mesmo para mim, hoje parece que nunca trabalhei com outra coisa, mas a verdade é que escrevi alguns livros e dezenas de contos antes de chegar ao mundo de A Bandeira do Elefante e da Arara. Foi em 2006 que tive a primeira ideia de escrever uma fantasia brasileira. Eu tinha lido alguns livros de história brasileira nos anos 90, e pensei em escrever algo ambientado na era dos bandeirantes. Juntei isso com o meu conhecimento do folclore brasileiro e, como dizem, o resto é história. Na época, aquela foi apenas “mais uma” história (escrevi mais seis histórias só naquele ano), nunca imaginei que aquela única ideia iria tão longe, mas a história atingiu tamanho sucesso que este mundo ficcional acabou dominando boa parte da minha vida profissional nos últimos sete anos. O mundo de A Bandeira do Elefante e da Arara é quase sinônimo da minha produção artística, mesmo sendo uma pequena fracção de tudo que escrevi até hoje.
8- Como os leitores receberam essa obra?
Tive muito sucesso com esta série, fico honrado (e às vezes até chocado) com a receptividade que recebi até hoje dos leitores. As histórias deste mundo já foram publicadas em seis países (em revistas e podcasts que atingiram centenas de milhares de leitores), já me renderam indicações e prêmios, e elas já estão indo para outras mídias. A graphic novel foi lançada em novembro do ano passado, e outros projetos estão a caminho.
9- De todas as suas publicações, qual trouxe mais alegria e por quê? E qual te frustrou mais?
O que mais traz alegria é ver uma história ter impacto em algum leitor jovem. Ano passado, um leitor de uns 13 anos me disse que a minha história “Cada História Tem” (publicada no livro SAGAS vol. 1 pela editora Argonautas) foi a melhor história que ele tinha lido na vida. A mesma história inspirou um grupo de alunas a produzir uma bela pintura. Uma turma de outra escola criou uma ótima peça de teatro baseado no conto “A Batalha Temerária Contra o Capelobo” (publicado no livro Duplo Fantasia Heroica 2 pela Devir). Estimular a leitura entre jovens é um dever da nossa sociedade, e quando as minhas próprias obras ajudam na formação do leitor, isso não tem preço.
Nenhuma publicação me frustrou, é sempre uma honra quando alguém aceita publicar uma das minhas histórias. O que é frustrante é não conseguir publicar certas histórias. No exterior, o mercado é muito competitivo, e é difícil vender ficção. Algumas revistas recebem mil submissões por mês, para publicar cinco ou seis delas. Já tive uma história que recebeu 22 rejeições antes de ser publicada. A melhor coisa que já escrevi (na minha opinião), já recebi sete, e continuo buscando a “casa” certa para ela. Mesmo assim, nem é tão frustrante. Como foi citado acima, a paciência aprendi faz tempo. Quando eu receber uma rejeição, mando a história para outro lugar e não perco tempo lamentando o fato. Tenho coisas demais para escrever para perder tempo assim.
10- Você já recebeu diversos prêmios:
Dentre todos esses, um deles pode ser considerado como a maior vitória na carreira, ou todos têm uma importância específica? Por quê?
Em termos de prestígio, a indicação do Nebula é de valor incalculável. O Nebula é reconhecido mundialmente como um dos dois principais prêmios da área da literatura fantástica (o outro é o Prêmio Hugo), e ele existe desde 1966. Como sonho da minha infância, ganhar um Nebula ou Hugo seria o auge para mim, equivalente ao sonho de uma criança desportista ganhar a Copa do Mundo. Não venci, mas a indicação de finalista já é algo que nunca ousei imaginar, algo muito além das minhas expectativas quando comecei.
Não digo isso para menosprezar os outros troféus, pelo contrário, são grandes reconhecimentos e tenho orgulho de todos. Participar da Jornadinha de Passo Fundo foi um dos melhores momentos da minha carreira literária. Trabalho há anos na organização da Odisseia de Literatura Fantástica, e receber o reconhecimento da Câmara Rio-Grandense do Livro e do Mondo Estronho este ano não tem preço. A indicação do Argos e a conquista do Prêmio Realms of Fantasy foram duas grandes honras inesperadas. Estes dois representam as opiniões mais importantes te todas: as dos leitores.
11- Qual o teu livro de cabeceira, aquele que não há possibilidade de se desfazer em nenhuma circunstância?
Primeiro, devo dizer que o meu pensamento é o oposto: quanto mais eu gosto de um livro, mais eu quero compartilhá-lo com outros. Repasso livros para outros toda hora, e não tenho problema em me desfazer dos melhores. Engraçado é que, muitas vezes, acabo comprando os livros que mais gosto uma segunda ou terceira vez, para relê-los e doá-los de novo! Neste contexto, acho que o livro que eu mais comprei e repassei na vida deve ser Uma Confraria de Tolos, de John Kennedy Toole. É um livro genial, e nem sei quantas vezes já comprei, li e o repassei para amigos.
12- Você, junto com Duda Falcão e Cesar Alcázar, idealizaram a Odisseia de Literatura Fantástica. Você considera a Odisseia um referencial para a Literatura gaúcha? Por quê?
O Rio Grande Sul possui uma riqueza de eventos literários. Não dá para comparar o impacto da Odisseia com o de grandes eventos como a Jornada Nacional de Literatura e a Feira do Livro de Porto Alegre. A Odisseia, porém, tem seu nicho, que é a literatura fantástica. O evento existe para promover os autores e editoras do gênero, e nesta área, o evento possui uma importância muito além do seu tamanho, em boa parte por causa da carência de eventos parecidos. Um grande número de profissionais de fora do estado participam todo ano. Recebemos em torno de sessenta profissionais e quinze editoras de fora do estado em cada edição, e cerca de quarenta profissionais e três editoras gaúchas. Destes números, dá para ter uma noção da receptividade nacional que o evento recebe.
O evento também auxilia na formação de novos leitores, que para mim é a questão mais fundamental, e o elemento que me dá mais orgulho deste trabalho que desenvolvemos ao longo dos últimos quatro anos.
13- As Mosqueteiras gostariam de deixar o nosso muito obrigada pela paciência em responder nossas perguntas, muito sucesso na carreira escolhida e abrimos o espaço para que você possa deixar algumas palavras aos leitores do nosso site e aos escritores de um modo geral.
O prazer foi todo meu. Eu gostaria de agradecer ao convite da Ceres para participar desta entrevista e de todas as pessoas envolvidas nesta grande iniciativa que é Literárias Mosqueteiras!