CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM
TEORIA LITERÁRIA: PROFESSORA ANALISA O PERSONAGEM EM SUA CARACTERÍSTICA DE REAL E COMO ELEMENTO MOTOR DA NARRATIVA.
Independente de haver ou não modelos reais que assegurem as personagens ficcionais como simulacros de humanos, elas existem no texto literário porque se materializam através de um jogo de linguagem. O escritor lhes dá vida, caracterizando-as de forma a criar, para o leitor, a ilusão de realidade. Muitas personagens resultam da síntese de objetos reais percebidos e memorizados pelo escritor, que inventa um novo ente mediante estratégias textuais. Ser da linguagem, elas se constroem juntamente com os demais elementos do texto, narrador, intriga, lugar, tempo, ação, podendo exercer diferentes funções no conjunto da obra. Ao criar a personagem, o escritor cria também a si próprio, a trama e suas circunstâncias.
Ao longo do tempo, a personagem quase sempre é vista em sua relação com a pessoa humana, construída para corresponder às características de verossimilhança, possibilidade e necessidade apontadas nas origens da teoria literária pela Poética aristotélica. A partir da expansão dos estudos sobre o romance empreendidos no século XX, muitos teóricos debruçaram-se sobre a personagem para estabelecer classificações e descrever sua origem, natureza e função. De Lukács a Forster, aos formalistas russos e aos pós-modernos, surgiram hipóteses sobre a representatividade social da personagem, o modo “redondo” ou “plano” como se comporta no texto, as funções que desempenha no corpo da narrativa, seus vínculos com autor e narrador. Atualmente, tende-se a considerá-la para além do seu caráter antropomórfico, eis que ela não se limita a espelhar a realidade, mas integra e define a construção do texto. Tal como ensina a tradição, a personagem tende a ser o elemento motor da narrativa. A partir de suas ações, as coisas acontecem.
O crítico brasileiro Antonio Candido, no ensaio intitulado “A Personagem no Romance, sintetiza a ontologia e manifestação da personagem segundo sua construção e surgimento do texto literário. Ela pode ser reconhecida pelo que: o narrador informa a seu respeito; pelo que fala de si própria; através do que outras personagens dizem sobre ela. Além disso, concretiza-se também pelas ações que pratica e pelo pensamento expresso em linguagem nos diálogos, solilóquios, monólogos e fluxos de consciência. Na literatura brasileira, José Dias, o agregado de “Dom Casmurro”, fala por superlativos. Os coronéis de José Lins do Rego, em “Menino do Engenho”, vociferam por interjeições. Também são exemplares as personagens de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, cujas falas monossilábicas remetem ao mundo seco e agreste do sertão nordestino.
Assim , à margem de classificações e tipologias, a personagem consiste no componente fundamental do texto, seja prosa ou poesia, pois dela dependem os demais elementos criados. Em obras modernas e contemporâneas, não raro elas se confundem com o narrador intimista ou mesmo com o autor, como se lê em obras de autoficção. Também nos poemas sempre há personagens, desde as mitológicas dos poemas épicos, como em Camões, até em poemas líricos, onde o eu poético forma-se como ser de espaço e grafia. A própria fusão do sujeito e do objeto nos poemas resulta na criação de personagens pela inserção de vozes no texto. Os heterônimos de Fernando Pessoa, nesse caso, são personagens que assumem a voz de autor e a pretensa autoria dos poemas. Carlos Drummond de Andrade, tão caro aos leitores brasileiros, cria interlocutores para o seu eu poético, como José, o Anjo Torto e o próprio Carlos, mencionado num jogo de espelhamento semelhante aos de Jorge Luis Borges em muitos contos ou poemas. Já nos romances de natureza histórica, o dado real que motiva o texto não impede o escritor de inventar a figura que mais lhe apetece e lhe completa o texto. Isso faz com que romances ou narrativas ficcionais fundamentados no real histórico sejam mais convincentes do que a própria história, o que a leitura da obra de Erico Veríssimo comprova.
Evitando sistematizações, cabe ressaltar que, muitas vezes, personagens emprestam seu nome às obras que protagonizam. Isto, das tragédias gregas (Édipo, Antígona, Lisístrata, Ifigência, etc.) aos dramas shakespearianos (Hamlet, Rei Lear, Otelo, Romeu e Julieta, etc) e aos romances e contos até a atualidade. Também personagens secundárias são criados de modo a compor a intriga e a verossimilhança da obra. E são inesquecíveis, passando a existir na consciência do leitor que com elas se identifica no jogo textual. Esmeralda e Quasímodo, Dom Quixote e Sancho Pança, Dom Casmurro e Capitu, como também personagens de Tchekov, Maupassant, Edgar Allan Poe, Flaubert, Virgínia Woolf, Kafka e tantos outros, convivem conosco na magia da leitura. A personagem de ficção não raro sai do texto para ocupar um espaço especial no mundo afetivo dos leitores.
Fonte: Correio do Povo/CS/Léa Masina (Professora da UFRGS) em 06/8/2016.