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Teoria Literária: A Arte de Modelar Personagens
Teoria Literária: A Arte de Modelar Personagens

A ARTE DE MODELAR PERSONAGENS

 

ESCRITA:  ESCRITOR ABORDA A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM A PARTIR DO CONCEITO ARTESANAL DO MODELAR.

 

Construir personagens é tarefa rara, coo Victor Hugo fez com Jean Valjean, em “Os Miseráveis”, um verdadeiro monumento da literatura universal.

 

Geralmente, o que fazemos, os escritores, com maior ou menor competência, é modelar nossos personagens, dos mais simples aos mais complexos, utilizando a argila do tempo em que estão vivendo.

 

Gosto muito dessa expressão “modelar personagens” (que li pela primeira vez, ainda adolescente, no ensaio de Mozart Pereira Soares “As mulheres na obra de Erico Verissimo”) porque, para mim, modelar tem mais gosto de artesanato do que construir.

 

Mas, seja qual for o verbo empregado, dar vida aos personagens é uma tarefa que exige emoção, talento, pesquisa, honestidade, intuição.

 

Vamos recordar, como exemplo, a primeira personagem que marcou aminha infância: Emília, a ex-boneca, alter ego de Monteiro Lobato.  Numa época em que ainda se faziam brinquedos em casa (meus caminhõezinhos e os do Chico Alfaia Silva, lá em Alegrete, eram feitos com caixetas de goiabada e rodas de carretel de linha), Emília nasceu das mãos de Tia Nastácia, feita de pano recheado com macela cheirosa e, todos sabem: com olhinhos de retrós.  Nasceu muda como as bonecas, mas, depois de engolir as pílulas do Doutor Caramujo, começou a falar tanto que se adonou da obra do escritor.  Sem Emília liderando os personagens do Sítio do Picapau Amarelo, Monteiro Lobato não teria se transformado no mais importante escritor para crianças da literatura brasileira.  Ainda a semana passada, relendo “Os Doze Trabalhos de Hércules”, fiquei com os olhos cheios de lágrimas quando Emília advoga a causa de Prometeu, o titã acorrentado nas alturas do Cáucaso, condenado a ter o fígado eternamente devorado por um abutre, pelo crime de ter roubado o fogo divino para entregá-lo aos seres humanos.  Hércules arranca as correntes com suas mãos poderosas, mas são as palavras de Emília que nos fazem chorar de rebeldia e emoção.

 

De Emília, passei para Blau Nunes, o personagem principal de Simões Lopes Neto, embora, de todos os que ele moldou, seja o Negro Bonifácio o que mais mexeu comigo, ao ponto de motivar-me, muitos anos mais tarde, a escrever os livros “João Cândido, o Almirante Negro” e “O Farol da Solidão”.  Mais do que o sofrimento do “Negrinho do Pastoreio” e do drama patético de “O Navio Negreiro”, de Castro Alves (que sei até hoje de cor), tocou-me a autenticidade, a valentia, o panache (palavra que vim a conhecer dos lábios de Cirano de Bergerac, outro personagem imortal) daquele gaúcho negro que olhava o mundo de cabeça erguida e mão pronta a arrancar o facão.

 

Logo depois de Simões Lopes, mergulhei no “Continente” e apaixonei-me por Ana Terra, ao ponto de ajudar-me a criar “Ana Sem Terra”, um dos romances mais difíceis que escrevi.  Nesse primeiro livro da trilogia “O Tempo e o vento”, de Erico Verissimo, também bebi água na “Fonte”, o capítulo dedicado às Missões Guaranis, gênese do meu romance “Sepé Tiaraju”.

 

E já que falei em Sepé, personagem real, tanto é que está em andamento no Vaticano um processo para canonizá-lo, devo explicar como trato os personagens reais em minhas narrativas.  Num romance histórico, a história sempre deve ser respeitada em primeiro lugar, o que exige uma pesquisa que pode nos custar anos de trabalho.  Dizem que Margareth Mitchell, a autora do romance “E o vento Levou...”, baseado no qual o cinema nos revelou personagens de ficção da densidade de Scarlett O’Hara, passou 20 na os estudando a História dos Estados Unidos no período da Guerra da Secessão.  O mesmo tempo de pesquisa empregou sua tocaia Marguerite Yourcenar para estudar a vida do imperador Adriano, antes de escrever seu monumental romance.  De minha parte, passei sete anos pesquisando sobre as Missões Guaranis, inclusive em outros países, como Argentina, Espanha e França, para não cometer equívocos históricos imperdoáveis.  Somente após a morte de Sepé Tiaraju, como mártir da sua Fé, me permiti mergulhar na lenda que levou o povo a cultuá-lo como São Sepé.  Nesse caso, como disse napoleão Bonaparte, o personagem que não entra para a lenda não é digno de estar na História...

 

No romance “Nos Céus de Paris”, onde conto a vida de Alberto Santos Dumont, não criei um único personagem de ficção, temeroso de que os adeptos dos Irmãos Wright me acusassem (eles que tanto mentem) de ter inventado alguma coisa sobre o pioneiro da aviação.  Durante cinco anos devorei todos os livros que encontrei sobre o tema, inclusive escritos originalmente em inglês, francês e alemão.  Como todos eles pareciam copiados uns dos outros, decidi pesquisar diretamente nos jornais e revistas de Paris, principalmente na coleção do jornal Le Matin, o mais rico em informações sobre os voos daquela época (1891/1909).  Foi nele que encontrei a descrição do primeiro voo em balão dirigível feito por uma mulher, a cubana Aída de Acosta, talvez o maior amor da vida de Santos Dumont.  Ele, que era seu único piloto de provas, que jamais entregou os comandos de seus inventos a nenhuma outra pessoa, concordou em ensinar Aída a pilotar sozinha e orientou seu pouso no centro de um campo de polo, no Bois de Boulogne, pouco antes dos cavaleiros começarem o jogo.  O jornal descreve o “frisson” que tomou conta do povo quando Aída saiu da barquinha do balão, com um longo vestido azul e um chapéu primaveril.  E foi recebida no solo por Alberto, com a emoção digna de um tal momento.

 

Quantos personagens modelados por outros ou por mim mesmo estão, agora, aqui em volta, pedindo passagem.  São eles que nos motivam nessa corrida de revezamento que é o ofício de escrever.

  

Fonte:  Correio do Povo/CS/Alcy Cheuiche (escritor) em 06/8/2016.