SÓ TEM CREDIBILIDADE QUEM INVESTIGA, CHECA E SE IMPORTA COM A PRECISÃO.
COM A PALAVRA ELIANE BRUM
“Sou uma escutadeira que escreve”. Repórter desde 1988, documentarista desde 2005, ficcionista desde 2011.” Assim, em eterna mutação, quase sempre em transição, Eliane Brum se define, em seu site www.desacontecimentos.com Uma das mais premiadas jornalistas do país, natural de Ijuí, ela trabalhou 11 anos como repórter de ZH e 10 na revista Época. Desde 2010, atua como freelancer. Tem se dedicado muito à internet, com textos para os jornais El País e The Guardian sobre temas polêmicos. Para debater sobre o futuro – e o presente – do jornalismo, Eliane, 49 anos, é a primeira convidada de 2016 do evento Em Pauta ZH – Debates sobre Jornalismo. Nesta semana, a jornalista concedeu a seguinte entrevista por e-mail.
A crise política e econômica do país coincide com a preocupação sobre como financiar e manter o jornalismo. Veículos tradicionais estão em xeque, e a imprensa alternativa ganha a confiança momentânea das pessoas, mas não mantém atenção a longo prazo. Como você analisa o jornalismo atual e o futuro?
O jornalismo vive uma crise do modelo de negócios há vários anos, desde que a internet mudou o mundo e também a forma como as pessoas têm acesso, produzem e se relacionam com a informação. Nas manifestações de junho de 2013, ficou claro que, no Brasil, essa crise da imprensa era também uma crise de credibilidade. Parte da população, em especial os mais jovens, não se sentia representada pelos políticos e partidos tradicionais, mas também não se sentia representada pela mídia tradicional. Iniciativas como Mídia Ninja foram decisivas para que a população tivesse acesso a outras narrativas sobre os protestos, feitas a partir das ruas, já que, em certos momentos, parte dos jornalistas da imprensa tradicional só conseguiu cobrir as manifestações de helicóptero ou do alto dos prédios. A crise política é um momento crucial para o Brasil – e também para a imprensa.
Essa dupla crise vivida pela imprensa, a do modelo de negócios e a da credibilidade, ganhou contornos mais visíveis neste momento histórico. A imprensa tem um papel fundamental numa democracia. E a imprensa brasileira, em especial o impresso, que sempre foi relacionado a uma narrativa de maior profundidade, está muito frágil. As redações estão muito menores, com suas equipes reduzidas. As demissões, em geral, atingiram os jornalistas mais experientes, que seriam imprescindíveis neste momento, porque entendem sua responsabilidade, assim como as armadilhas que precisam evitar cair num momento tão delicado, com tantas pressões e cascas de banana pelo caminho. São também estes que seriam mais capazes de fazer a resistência internamente, já que toda redação é um campo de conflitos. Essas ausências e essa fragilidade se fazem sentir claramente neste momento em que o tempo no Brasil está acelerado. Dias atrás, escrevi um artigo para o jornal britânico The Guardian e explicava que, no Brasil, uma pessoa assistia à posse do Lula como ministro, ia ao banheiro e, ao voltar, a nomeação já tinha sido cassada por um juiz de primeira instância. Como fazer bom jornalismo diante desta velocidade? Cabe à imprensa contextualizar, com responsabilidade e sem histeria, o que está acontecendo. Cabe, especialmente, fazer reportagem, seu grande diferencial como narradora da história em movimento. Há pouca reportagem de fato na cobertura da crise e da Operação Lava-Jato. Há mais o que autores como o jornalista Solano Nascimento chamam de “jornalismo sobre investigações”, muito diferente de “jornalismo de investigação”. A imprensa se baseia no que é vazado pela Polícia Federal, pelo Ministério Público federal e pelo juiz Sergio Moro. E não em suas próprias investigações, com raras e honrosas exceções. Esse lugar de mera reprodutora do que convém para investigadores vazar ou divulgar, às vezes sem checagem ou crítica, é perigoso: a imprensa fica vulnerável a manipulações. E o leitor corre risco de ser mal informado, com graves consequências para a sociedade.
Ao mesmo tempo, com os sites dos jornais precisando ser abastecidos, há muita pressa. E é difícil fazer bom jornalismo com pressa. Assim, também podemos testemunhar alguns jornais e noticiários de TV “comprando”, ou mesmo aderindo a versões, e apresentando-as como verdade. E, pior do que isso, apresentando-as como a verdade inteira. Acho que setores da imprensa brasileira terão que dar muitas explicações para a História sobre o seu papel na atual crise. Ou a imprensa se mostra à altura do momento ou será cobrada por isso no futuro. Junta-se a isso uma crise de credibilidade que só cresce entre parcelas da população e temos um momento muito delicado para o jornalismo. A crise política atual mostra também o quanto é frágil uma democracia sem uma imprensa forte e responsável, consciente do seu papel histórico de documentar a sua época com honestidade.
Como conciliar a produção frenética de informações em tempo real com a necessidade de imersão em reportagens de qualidade?
Para te responder, preciso contextualizar um pouco. Durante o século 20, a imprensa foi a narradora hegemônica do seu tempo. A partir da internet, a imprensa deixou de ter essa posição confortável. A imprensa, desde especialmente a segunda década deste século 21, só será uma narradora importante sobre o seu tempo, sobre o que chamo de história em movimento, se souber valorizar a reportagem, o grande diferencial do jornalismo sobre outras narrativas.
Ainda se faz grande reportagem no Brasil. Muito menos do que seria necessário, mas ainda existe. Tanto na imprensa que agora é chamada de “tradicional” como na “alternativa”. O que me parece que sofreu mais com a crise do modelo de negócios é a cobertura cotidiana. Esta é a tragédia maior da imprensa, e, portanto, da sociedade. A cobertura cotidiana é cada vez mais precária, rasa e fragmentada. Vivemos um momento histórico difícil, duro, mas também fascinante. Mas os Brasis, porque não existe um Brasil só, não estão sendo contados cotidianamente pela imprensa. Há enormes porções descobertas, narrativas que nunca serão escritas, capítulos inteiros perdidos. Acho isso doloroso. Uma catástrofe literalmente silenciosa.
Para ficar mais claro, podemos pensar num exemplo. Nenhum veículo cobriu cotidianamente a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, a maior obra do setor elétrico do país. Mais de R$ 30 bilhões em jogo, a maior parte deles vinda do BNDES, e nenhum veículo, grande ou pequeno, cobriu cotidianamente a construção, com suas vastas implicações e violações de direitos. Na ditadura militar, com toda a censura que existia, se cobria melhor a Amazônia do que hoje, na democracia. A hidrelétrica de Tucuruí teve cobertura cotidiana. Belo Monte, não. Houve algumas grandes reportagens, mas não houve cotidiano. E essa ausência da imprensa teve consequências gravíssimas que só agora começam a se tornar mais claras.
No que se refere à questão da velocidade, é importante dizer que não cabe à imprensa ocupar o lugar das redes sociais. Cada vez que uma matéria se parece mais com um post no Facebook, o jornalismo despenca mais um degrau rumo à irrelevância. Se não há reportagem, para que imprensa? Meu vizinho faz ótimos posts no Facebook, mas o que ele faz não é jornalismo. O problema é parte da imprensa fazer posts como o meu vizinho e apresentar isso como reportagem. Acho que é um grande erro sacrificar pilares do jornalismo como a investigação, a precisão e a checagem rigorosa para ganhar alguns minutos de vantagem. Que vitória é essa se o que fica é justamente mais e mais irrelevância, que vai custar a história?
Como leitora, não leio o mais rápido, eu leio o que tem credibilidade. E só tem credibilidade aquele que sabemos que investiga, checa e se importa com a precisão. Isso vale para a matéria cotidiana, vale para a grande reportagem. Se não se obedece aos critérios do que é jornalismo, é simples: não é jornalismo. Então, não me parece que seja questão apenas da aceleração do tempo, trazida pela internet. O problema é bem maior. É triste que alguns veículos tradicionais estejam enterrando a sua história para competir com posts de redes sociais. A única competição que vale a pena para o jornalismo é a que se dá em torno da qualidade, da profundidade e da credibilidade do conteúdo.
Como financiador o jornalismo sem comprometer algo crucial para a credibilidade da reportagem: a independência e a transparência?
Esta é uma resposta que ainda precisa ser construída. O bom jornalismo custa caro. Reportagem custa caro. É preciso, às vezes, ficar semanas num arquivo, sem nenhum glamour, engolindo pó, para encontrar uma primeira pista para uma investigação. E, às vezes, essas semanas não dão em nada. Assim como é preciso pagar gente experiente que seja capaz de entender para onde olhar, assim como entender o que vê. Repórteres mais velhos, que possam formar a geração seguinte. Essa geração, a que formava a geração seguinte, foi deletada das redações porque custava mais caro. É preciso trazê-la de volta. Há no Brasil vários modelos convivendo, mas ainda não encontramos um modelo que garanta a independência e a total transparência. A maior parte das novas iniciativas tem modelos colaborativos e não lucrativos, como por exemplo A Pública e a Repórter Brasil, agências de reportagem que têm feito um trabalho competente. Nestes casos, as grandes reportagens são financiadas por fundações internacionais. Há também experiências pontuais com crowdfunding (financiamento coletivo via doações do público na internet). Mas esses modelos também têm limites. Acho que a melhor maneira, a mais transparente, a que realmente garantiria in dependência, seria o financiamento pelo público. Seria preciso formar um leitor que considere importante ter uma imprensa competente e que se disponha a pagar por informação de qualidade e de profundidade. Faço parte dos jornalistas que sonham que a reportagem possa ser paga com um clique. Literalmente um clique, não pode ser mais complicado do que isso. E que esse clique pague o salário do repórter e os custos da próxima reportagem. Por exemplo: uma reportagem ou artigo ou entrevista que tenha 30 mil acessos, o que é totalmente viável, a R$ 1 por acesso. Mas isso ainda precisa ser construído junto com a sociedade, com este novo leitor. O que posso afirmar é que, nesta construção, é preciso resgatar algo fundamental que, em grande parte, se perdeu: a separação Estado-Igreja – ou editorial-comercial. A imprensa precisa ser “laica”. O editorial não pode estar contaminado pelo financiamento. Hoje, em grande parte dos casos, está. Já é bem complicado que esteja contaminado. Tudo fica pior ainda porque nem sempre isso é contado ao leitor. Quando o editorial está contaminado pelo financiamento, a reportagem já fica sob suspeição desde o início. Seja qual for a saída, é preciso que ela garanta a separação Estado-Igreja.
Você publicou seis livros – cinco de não ficção e um romance – e também escreveu crônicas e contos. Como se dá essa transição do jornalismo que lida com fatos reais, para a ficção?
Costumo descrever a reportagem como um movimento profundo. E bem difícil de fazer, que cobra um preço alto de quem a ela se arrisca. Como se sabe, a reportagem se faz na rua, com os pés enfiados na lama dos acontecimentos. Antes de ir para a rua concreta, porém, é preciso atravessar a rua de si mesmo. É preciso fazer esse movimento profundo que consiste em se desabitar de si para ser habitado pelo mundo do outro – ou pelo mundo que é o outro. Desabitar-se de si no sentido de se despir das suas visões de mundo, de seus preconceitos, de seus julgamentos, de uma determinada forma de ser e de estar no mundo, para se deixar habitar por uma outra experiência. E, depois, empreender o caminho de volta, o que não é nada fácil. Se um repórter não faz este movimento, em vez de escrever sobre um outro escreverá apenas sobre si mesmo. É claro que esse movimento jamais é completo, mas é o que nos leva mais perto da complexidade dessa outra experiência, das tantas verdades, porque nunca há uma só verdade, e também das tantas contradições e nuances. Se um repórter não atravessa a rua de si mesmo, pode ir até o outro lado do mundo e passar um ano lá, que vai voltar escrevendo sobre o que já sabia antes de partir, porque de fato não partiu nem retornou, mas sim permaneceu simbolicamente no mesmo lugar.
Já o movimento da ficção é semelhante, mas com o sentido inverso. Na ficção é preciso ter a ousadia de se deixar possuir pelos outros que vivem nas nossas profundezas abissais. Ou, dito de outro modo, se deixar possuir pelos outros de si. Costumo dizer que a ficção é feita no mesmo lugar em que vivem aqueles peixes cegos, fantasmagóricos, que a gente vê nos documentários da National Geographic. Gosto muito de ficção de terror e também de ficção científica. Escrevendo meu romance descobri duas coisas: a primeira é que não há nada mais aterrorizante do que ser possuído por si mesmo. A segunda é que há realidades que só a ficção suporta. Ou há realidades que precisam ser inventadas para serem contadas.
O que dá mais satisfação: reportagem ou ficção?
A reportagem. Não me importo com a felicidade. A felicidade, para mim, diz respeito ao mundo do consumo. Me interesso pela alegria, essa experiência complexa, rara, que diz respeito também à resistência. É quando faço reportagem que tenho alegria. Mesmo quando o que experimento e testemunho é devastador, sinto que estou onde deveria estar. Escutar as pessoas, coisa que um repórter faz com todos os sentidos, me dá profunda alegria. É na rua que eu me sinto em casa.
Em um de seus textos mais recentes, você escreveu que considera a polarização “mais uma falsificação entre tantas neste momento conturbado do país”. Por outro lado, assistimos a discussões inflamadas, com pessoas destilando ódio. Como as vozes mais ponderadas podem ser ouvidas em meio a posições tão extremadas?
Como ser ouvido, não sei. Mas acredito que é preciso seguir dizendo. E é preciso seguir dizendo sem gritar. Quem grita não ouve nem quer ouvir. Gritar como forma de se mover no mundo é um ato extremamente autoritário, porque silencia a voz do outro. E silenciando a voz do outro, mata-se o outro simbolicamente. O espaço público precisa voltar a ser o espaço da alteridade. Precisamos conviver com os diferentes e com as diferenças. Precisamos voltar a nos interessar por ouvir. Precisamos voltar a conversar.
Nesse texto que você cita, escrevo que, diante da brutal diferença nos políticos e nos partidos, podemos perceber algo paradoxal: uma vontade feroz de crença. Isso é bem perigoso. Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus. Precisamos nos mover na política pela razão, não pela fé. Mover-se pela razão implica escutar e duvidar, do que nos é dado rapidamente a ver e também de nossas certezas. Implica responsabilizar-se pelas próprias escolhas. No caso da imprensa, é preciso voltar a perguntar, voltar a fazer muitas perguntas, e resistir à tentação das conclusões rápidas demais, peremptórias demais. A adesão pela fé, na esfera da política, só noz traz messianismos, tenha o messias a cara que tiver. É mais fácil cultuar um messias, seja ele quem for. Mas somos nós que precisamos achar um jeito de construir um país, o que dá muito mais trabalho. E não vamos conseguir fazer isso gritando. Nem nos colocando como a encarnação do bem – e os que pensam diferente como a encarnação do mal. Precisamos refletir mais sobre um traço da cultura brasileira, um traço que atravessa a nossa história. Somos um país de linchadores. Em vez de justiça, vingança. É fundamental que, neste momento histórico tão delicado, lutemos por justiça e repudiemos a vingança. Do contrário, nada de realmente profundo mudará no Brasil.
Os movimentos feministas têm alcançado maior visibilidade, com campanhas como #meuprimeiroassedio e “Vai ter shortinho sim!”. Mas também crescem as reações conservadoras: o Congresso aprovou projeto que impõe mais restrições ao aborto. Como avalia esse cenário?
Temos vivido tempos extremamente duros. A política que me anima é esta, a de campanhas como #meuprimeiroassedio, assim como movimentos dos estudantes das escolas públicas de São Paulo. Porque isso também é política, é gente fazendo política e ocupando o espaço público politicamente. São um alento, uma prova de que algo se move em meio a esta aparente paralisia. Ao mesmo tempo, temos o Congresso mais conservador desde a redemocratização. E também um Congresso extremamente corrupto. Para este Congresso, em especial para a chamada Bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia), o corpo das mulheres é moeda de chantagem. Milhares de brasileiras, a maioria delas jovens e negras, morrem todos os anos por abortos malfeitos e clandestinos, porque não há interesse em discutir seriamente a descriminalização. Não há interesse porque é preciso manter o aborto como moeda eleitoral e de barganhas. Na prática, como qualquer um que não seja hipócrita sabe, o aborto é liberado no Brasil para quem pode pagar. Só é crime para as mais pobres. E também por isso, porque “só” mata as mais pobres, a maioria delas negras, é possível manter o aborto como moeda de chantagem. Insisto nisso, porque o aborto é também uma questão de classe e de raça no Brasil. Diz respeito à desigualdade e ao racismo, duas de nossas fraturas maiores. Por isso, precisamos ser muito gratos a essas mulheres mais jovens que estão levando a luta pela autonomia sobre os seus corpos, sobre suas vidas adiante. Elas devolvem a beleza da política que está sendo reduzida e enxovalhada neste Congresso que chantageia com a vida das mulheres.
PARA LER:
Primeiro dos seis livros de Eliane, O AVESSO DA LENDA, refez, 70 anos depois, os 25 mil quilômetros da Coluna Prestes: “Considero minha reportagem fundadora. Foi quando descobri não o Brasil, mas os Brasis”. No seguinte, reuniu textos da série A VIDA QUE NINGUÉM VÊ: “É nela que consigo me definir e me assumir como uma repórter de desacontecimentos”. O OLHO DA RUA mostra bastidores de suas reportagens, e UMA DUAS, seu romance, é uma trama de ódio e afeto entre mãe e filha. A MENINA QUEBRADA traz crônicas e artigos, e meus desacontecimentos revisita suas memórias de infância. Sua reportagem m ais premiada é O POVO DO MEIO, fundamental para a criação da Reserva Extrativista Riozinho de Anfrísio, no Pará: “Fui a primeira jornalista a chegar até lá num momento em que eles estavam ameaçados de morte pelos grileiros e não eram reconhecidos pelo país oficial”.
PARA VER:
Eliane é codiretora e corroteirista de dois documentários. UMA HISTÓRIA SEVERINA (2005) acompanha a luta de Severina, uma pernambucana pobre e analfabeta, para interromper a gestação de seu bebê anencéfalo.
GRETCHEN FILME ESTRADA (2010) narra a última turnê e a primeira campanha política da rainha do rebolado, que, em 2008, candidatou-se à prefeita da Ilha de Itamaracá (PE) pela coligação PPS-PV.
Fonte: ZeroHora/Rodrigo Lopes (rodrigo.lopes@zerohora.com.br) em 27 de março de 2016.