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Professor - Profissão: Perigo
Professor - Profissão: Perigo

PROFESSOR — PROFISSÃO:  PERIGO

 

Agredidos por alunos na sala de aula, ameaçados por bandidos e traficantes e desrespeitados pelos pais, os professores tem que lutar para exercer com dignidade a carreira que escolheram.

 

A professora de Educação Artística Wanda de Araújo Queijo deu uma olhada no caderno e pediu:  “Está errado.  Precisa apagar e fazer de novo”.  O menino, da sexta-série de uma escola pública de São Paulo, arrancou a folha, fez uma bolinha de papel com um pedaço dela e caminhou para a frente da sala.  Jogou-a no lixo e, desafiadoramente, começou a fazer mais bolinhas com o restante do papel.  “Eu preciso continuar a aula”, disse Wanda tentando manter a voz firme.  O aluno fez que não ouviu.  “Vá para a sala do diretor”, mandou.  “Não vou”, respondeu ele.  “Quando peguei o material dele e insisti para que saísse, ele começou a me dar socos e pontapés pelo corpo todo”, conta Wanda, 45 anos – dez de magistério público.  Para fugir da agressão, ela foi para o corredor.  O garoto a perseguiu e os colegas passaram a incitar a briga.Ela só parou de apanhar quando um funcionário imobilizou o menino. “Isso foi no ano passado.  Consegui vaga para lecionar em outro lugar e hoje estou bem.  Mas perdi as ilusões.  Haverá um dia em que professor vai preferir catar latas na rua a dar aula.”

 

A história vivida por Wanda não é um episódio isolado numa escola de periferia de cidade grande.  Ela é cada vez mais frequente em todo o país.  “Os alunos estão derrubando as barreiras do respeito”, acredita Yves de La Taille, do Instituto de Psicologia da USP e estudioso da violência nas salas de aula.  “Antes, eles tinham medo dos professores.  Hoje, os professores é que estão com medo.” O temor se justifica:  educadores e especialistas ouvidos pela reportagem relataram histórias de crianças e adolescentes que lhes apontam armas, xingam, intimidam-nos com ameaças de morte e, em casos extremos, matam.  A professora de História C.M.S., do Rio de janeiro, chegava à Escola Estadual Josué de Castro, na zona norte, com uma colega quando uma moto parou ao lado das duas.  Um rapaz desceu da garupa, atirou na nuca da outra mulher e fugiu.  “Ela tinha sido ameaçada de morte por um estudante”, relembra C. Em 1998, no seu último dia de trabalho antes da aposentadoria, a professora Maria de Fátima Pascarelli, do Rio de Janeiro, abriu um envelope enviado em seu nome.  Dentro dele, uma bomba, que explodiu e decepou sua mão direita.  A polícia nunca descobriu o autor do atentado.  “Até hoje tomo calmantes para dormir e tenho crises de depressão”, diz.

 

EU PAGO O SEU SALÁRIO”

 

No fim do ano passado, o Sindicato dos Especialistas  Educação do Magistério Oficial do Estado (Udemo) realizou uma pesquisa em 496 escolas da rede pública estadual de São Paulo.  Em 84% delas, os professores relataram histórias de desacato com agressões verbais ou físicas cometidas por alunos, pais ou responsáveis.  “É o reflexo da pobreza, da desagregação familiar, da angústia de uma juventude que não tem espaço no mercado de trabalho”, avalia Volmer Aureo Pianca, responsável pelo levantamento.  No mês passado, a Secretaria Estadual de Educação anunciou a intenção de instalar câmeras de vídeo em 2.400 escolas.  Adianta? “Não é o controle externo que vai resolver”, acredita Yves de La Taille.  “O grande desafio das crianças será fazer coisas que as câmeras não vejam.”  Para ele, vigiar não é o caminho.  “Só quem se propõe a realizar uma discussão profunda do tema solucionará a questão.”

 

Nas instituições privadas, onde a violência existe mas é velada, predominam os ataques verbais.  Os casos de agressão física são mais raros.  Em compensação, sobra prepotência por parte dos estudantes – e de seus pais.  Muitas vezes, os professores são vistos apenas como empregados pagos para servir os alunos.  “Lá as crianças acham que podem tudo”, conta Maria Aparecida Chiarastelli, de São Paulo, 47 anos, dezesseis de magistério.  “É terrível uma mãe dizer para a gente: ‘Olha, o seu salário sai da mensalidade que eu pago’.”

 

RATOS E LACRAIAS

 

A brutalidade não está só nas palavras ou nas ações mas também no abandono da escola.  Abandono físico mesmo.  Como no Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, no Rio de Janeiro:  as paredes estão sujas, cobertas por pichações (quase sempre palavrões) e há apenas dois serventes para conservar o prédio, onde circulam 3.000 pessoas.  Os banheiros estão quebrados e há ratos e lacraias por toda parte.  “Num cenários desses, é claro que não há respeito”, desabafa Cláudia Queiroga, 25 anos, professora de Geografia.

 

O salário é outra forma de aviltamento.  No Estado de São Paulo, um professor de primeira a quarta série em início de carreira recebe 488 reais no mês para dar 24 horas de aula por semana.  Se chegar a diretor, pode aumentar os ganhos para 1.190 reais.  “Um oficial de Justiça, que tem apenas ensino médio, entra ganhando 1.500 reais”, compara o pesquisador Volmer Pianca.  “Professor merece um salário que lhe permita tratar os dentes, viajar nas férias, comprar livros, ir ao cinema”, defende Regina de Assis, ex-secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro.  Com parcos recursos para tudo isso, assustados e desrespeitados, muitos se sentem acuados.  “Eles resolvem de tudo na sala de aula: de desemprego a cargos de incesto.  Já ouvi desabafo de professor que não aguenta conviver com tanto ônus.  É difícil”, avalia Regina.  “A situação contribui para aumentar os problemas existenciais, a angústia e até a crescente falta de sensibilidade para esse tipo de problema.”

 

TOQUE DE RECOLHER

 

O fenômeno da violência não era tão visível até os anos 80.  A situação começou a degringolar a partir deste momento.  “A década de 70 trouxe o milagre econômico e, graças a ele, a classe média ascendeu socialmente”, explica Geraldo Suzigan, diretor técnico da Fundação Victor Civita, ligada à Editora Abril – e empenhada, hoje, numa campanha nacional de valorização do professor (veja abaixo “Lições de Respeito”).  “Nos anos 80, essa clientela trocou os estabelecimentos públicos pelos particulares, que não eram tão melhores, mas davam status.”   Os salários na rede pública despencaram, surgiu um sistema de educação em massa e a insegurança crescente no país contribuiu para agravar o quadro.  “A escola hoje reproduz uma situação de violência que está banalizada no cotidiano do brasileiro em índices insustentáveis”, avalia Jorge Werthein, representante da Unesco no Brasil.

 

Em 1997, o governo de São Paulo chegou a colocar policiais femininas nas escolas – programa extinto no ano passado, quando elas foram incorporadas à Polícia Militar.  Pode não ser a maneira mais democrática de enfrentar o problema, mas contribuía para apaziguar a situação nas regiões mais pobres.  Só que nem a presença dos policiais evitava o “toque de recolher” que vigorava então na Escola Estadual Renato Arruda, espremida entre quatro favelas na zona norte de São Paulo.  “Os traficantes ligavam e avisavam:  ‘Vocês tem 20 minutos para sair.  Depois  disso, começa o acerto de contas’ “, diz a diretora Eliana Bernardo de Mello.  Só em 1998, conseguiu-se por fim ao absurdo (veja “Aqui, a violência passa longe”).  “No Rio, ninguém fala no assunto, mas sabemos que as escolas próximas às regiões do tráfico acabaram fazendo acordos”, admite a educadora Vanilda Paiva, fundadora da ong Instituto de Estudos da Cultura e Educação Continuada, no Rio de Janeiro.

 

ARMA SOBRE A MESA

 

Situações tão surrealistas quanto admitir policiais na escola e negociar com traficantes aos poucos corroem a autoestima do professor.  “A maioria não está preparada para lidar com essas situações”, analisa Ana Paula Corti, pesquisadora na área de educação.  “Não é algo que se aprenda na faculdade.” Alguns até mantêm o sangue frio, como a professora carioca que, na hora de discutir a nota com um  aluno, viu-o colocar uma arma sobre a carteira.  “Quem lhe deu essa arma não vai gostar de saber o uso que você está fazendo dela”, argumentou.  O garoto concordou e guardou o revólver.  Para Ana Paula, a crise de autoridade e os desentendimentos que nascem dela evidenciam um novo padrão de relacionamento, que já não garante a ascendência dos mais velhos sobre os mais novos.  “O professor não sabe como conduzir essa nova forma de relação com os alunos, que por sua vez dão pouca importância ao papel da escola.”

 

Alguns educadores ligam a violência à falta de disciplina.  Nos últimos vinte anos, a noção de ordem perdeu força.  “Houve uma época em que existia fila de entrada, os alunos usavam uniforme completo e havia regras claras”, recorda Vanilda Paiva.  “A perda dos rituais abriu espaço para a contestação.  Como o jovem não tem ainda mecanismos para a contestação intelectual, ele agride.” Em muitas escolas públicas do Rio de Janeiro e em São Paulo, praticamente não há uniforme.  Os alunos entram e saem na hora que quiserem.  “Tive um que fazia caricaturas dos professores e colava nas paredes”, conta Jovina Maria da Silva, professora de português em São Paulo.  “A minha ele fez com roupa de presidiária.  E o pior é que, para a direção, a gente não sabe conduzir a classe.”

 

AULAS DE BONS MODOS

 

Muitos pais entregam a educação dos filhos aos professores, esquecendo o próprio papel.  “Perco mais tempo ensinando boas maneiras do que dando aula”, revela Marzia Augusto, 48 anos, de São Paulo.  “Os pais jogam o filho na escola e esperam que a gente os transforme.” Também sobram farpas para o sistema de progressão continuada, implantado no final da década de 90.  Por ele, o aluno só pode ser retido no último ano de cada ciclo.  “O bom aluno se sente desestimulado e o mau vai em frente, agora sem estímulo para melhorar”, critica Pianca.

 

Será que a educação está num ensino mais autoritário?  As escolas que encontram saídas para a violência provaram que não.  Abrir o prédio para os moradores do bairro nos finais de semana tem se mostrado eficaz para conservar o patrimônio e engajar a família na educação.  “Na periferia, os espaços públicos são mínimos”, explica Dirce Gomes, coordenadora do Projeto Vida, da prefeitura paulistana, que capacita docentes.  Para a educadora carioca Regina de Assis, melhorar a formação de quem ensina é urgente.  “Ser professor é bom demais, lidamos com corações e mentes”, defende ela.

 

Quem ainda não desistiu é porque, apesar de tudo, consegue manter esse entusiasmo pela profissão.  É o caso da carioca Claudia Quiroga, que leciona naquela escola por onde passeiam ratos e lacraias.  “Há dois meses, encontrei alunos jogando futebol no corredor.  Pedi que entrassem na sala, mas eles demoraram tanto para obedecer que eu desabei.  Falei que aquela atitude era uma violência contra todos nós.  Ficaram quietos.  No final da aula, um grupo pediu para ir ao banheiro e eu acabei deixando, mesmo sabendo que em geral não voltam mais para a aula.  Naquele dia, tive uma surpresa.  Minutos depois, o grupo reapareceu com panos, baldes e vassouras e começou a limpar a sala. A turma aderiu. Acredito que, se a gente ensina um caminho produtivo de revolução, eles desistem da violência.”

 

“O SISTEMA FALHOU”

 

O ministro da Educação, Paulo Renato Souza, tenta explicar o que deu errado no ensino e fala das possíveis saídas.

 

Por que a figura do professor perdeu prestigio?

Nos anos 50 e 60, o ensino público tinha boa qualidade, porém era restrito à classe média.  O professor era respeitado, tinha ótima formação e tinha autoridade.  Nas décadas de 70 e 80, o sistema de ensino se ampliou um número maior de crianças passou a frequentar a escola, porém não houve a atenção e os recursos necessários para manter o mesmo padrão.  A profissão perdeu prestigio, o que refletiu na formação dos educadores e na desvalorização salarial.  Diante desse quadro, a autoridade do professor se deteriorou na sala de aula.

 

 

Com tanto medo e insegurança, vale a pena ser professor?

Reconhecemos que o sistema de educação está obsoleto e que o salário é baixo.  Estamos tentando resgatar a valorização do professor com campanhas e programas além de reavaliar a questão salarial.

 

 

Que iniciativas poderiam diminuir a violência nas escolas?

Estamos com programas de informatização, criação de quadras esportivas e maior envolvimento da comunidade nas escolas.  Com essas medidas, o problema da violência deve diminuir em cerca de 70%.

 

LIÇÕES DE RESPEITO

 

Os apresentadores Jô Soares e Marília Gabriela e o ator Paulo Betti posaram como garotos propaganda para a campanha Bom Professor, Brasil Melhor, patrocinada pela Fundação Vitor Civita, ligada à Editora Abril.  Ao lado deles, mestres que lhes ensinaram lições – de escola e de vida.  O objetivo dos anúncios, que podem ser vistos em revistas de circulação nacional, é levantar a autoestima da categoria.  “Queremos devolver o respeito ao professor”, explica Geraldo Suzigan, diretor técnico da fundação.  “Ele é fundamental na construção do Brasil.” Por enquanto, nove celebridades já aderiram à campanha.  O próximo passo é pedir a pessoas comuns que homenageiem seus mestres.  A fundação também criou, em 1998, o Prêmio Professor Nota 10, que realiza este ano sua quarta edição.  No ano passado, 1640 se   inscreveram, narrando as soluções criativas que encontraram para melhorar a qualidade do ensino e, não raramente, de vida dos alunos.  Este ano, FVC já recebeu mais de 2000 nomes.  As inscrições se encerram no dia 15 deste mês, e a entrega dos prêmios será em outubro.

 

AQUI, A VIOLÊNCIA PASSA LONGE

 

Alunos bêbados enfrentando os professores em sala de aula.  Na hora do recreio, dez conflitos entre alunos todos os dias.  Alguns eram levados às pressas para os hospitais do bairro.  Não é à toa que, até 1997, poucos professores queriam lecionar na Escola Estadual Renato Arruda, no Jardim Carumbé, bairro violento da zona norte paulistana.

 

Hoje, a escola, que tem 3.200 alunos do ensino fundamental e médio, é apontada como modelo pela Secretaria Estadual de Educação.  No início de 1998, uma aliança entre a direção, os pais, professores, moradores do bairro e alunos implantou o programa Paz, o Caminho de um Novo Amanhecer.  A escola passou a abrir nos fins de semana para acolher cultos religiosos e cursos de teatro, dança e violão. No recreio, um disc-jóquei toca música para os grupos de rap e de hip hop se exibirem.  No bairro, passeatas pela paz mobilizaram a comunidade.  “Estamos a caminho de erradicar a violência”, comemora a diretora, Eliana Bernardo de Mello.  Embora seja mais comum onde estudam adolescentes, a violência também ocorre nas escolas de primeira a quarta série.  A Escola Classe 18, em Taguatinga (DF), encontrou uma fórmula original para combatê-la.  “Tínhamos alunos que chutavam professores, batiam portas e discriminavam os colegas de outras raças ou gordinhos”, conta a pedagoga Nadir Trindade Chaves Oliveira, que desde 1995 pilota o projeto Encontro com a Paz.  Alunos voluntários criaram um pelotão da paz para evitar brigas na hora do recreio.  Professores se fantasiam de personagens criados por eles próprios, cujo objetivo é incutir valores e estimular a solidariedade.  De tão bem sucedido, o projeto já foi exportado para três escolas do Distrito Federal.

 

Fonte:  Matéria de Bárbara Ceoto e Ana Holanda – publicada na Revista CLAUDIA em Julho/2001.

O que mudou?  Passaram-se 13 anos desde a publicação da reportagem... Evoluímos? Está tudo igual ou pior?  E então professores...?  Gostaríamos de seus comentários.