DRAMATURGIA DE CERVANTES COMPLETA 400 ANOS.
Nascido em 1547, Miguel de Cervantes, como se tornou conhecido, faleceu em 22 de abril de 1616, o que faz com que se comemorem os 400 anos de sua morte neste ano, em todo o mundo. Rememoram-se, assim, duas mortes ilustres, a de Shakespeare, e a de Cervantes.
Contemporâneos, dois grandes artistas em seus espaços geográficos, Shakespeare celebrizou-se como dramaturgo, embora também tenha escrito poesia, em geral, bastante apreciada, mas que, evidentemente, perde para a sua obra dramática. Cervantes, ao contrário, tornou-se de tal modo reverenciado pela criação de Dom Quixote de La Mancha que sua outra produção literária ficou minimizada e, sobretudo, no Brasil, conhece-se relativamente pouco sua dramaturgia, ainda que alguns estudiosos espanhóis entendam que o principal aspecto de sua produção seja, justamente, a dramaturgia. Por outro lado, Cervantes conviveu com alguns dos maiores dramaturgos do chamado século de ouro do teatro espanhol, como Lope de Veja e Calderón de La Barca.
Seja como for, a dramaturgia cervantina é importante e algumas de suas peças têm sido internacionalmente representadas, ultrapassando os tempos, inclusive aqui no Brasil. Cervantes, além do mais, também desenvolveu alguma teoria a respeito da dramaturgia, ora se aproximando, ora se distanciando daqueles que o haviam precedido ou dos com quem convivia. Boa parte destas questões teóricas aparecem, sobretudo, nos prefácios escritos para as suas peças teatrais e algumas poucas observações expressivas através de falas de alguns de seus personagens, como, aliás, também o fazia Shakespeare. Cervantes, além do mais, refletiu a respeito do teatro também em algumas passagens do Quixote.
Cervantes tem, como textos mais conhecidos de sua autonomia, ao menos no Brasil, obras como O CERCO DE NUMANCIA, obra com tema do classicismo e que é considerada como referencial do teatro da época. Trata-se de uma tragédia que, hoje em dia, embora seja potencialmente possível de ser levada ao palco, não tão interessante para o espectador contemporâneo.
Neste sentido, são mais atuais as obras vinculadas à chamada “comédia nova” que então se desenvolveu, lembrando-se que o mesmo significado da atualidade: não se trata necessariamente de uma representação para se rir: são, sobretudo, peças de costumes, com enredos mais ligeiros e flexíveis e que, por isso mesmo, de um lado, foram capazes de sobreviver ao tempo e, de outro, são excelentes documentos de época. No caso de Cervantes, devem-se destacar Pedro de Urdemalas, que corresponde a um tipo popular anônimo, nascido no período da renascença, e que se espalhou por toda a Europa, chegando inclusive ao Brasil, através da figura de Pedro Malasartes: trata-se de um tipo sem eira nem beira, que para sobreviver realiza trampas e armadilhas constantes. Ariano Suassuna, por exemplo em AUTO DA COMPADECIDA, vale-se deste tipo como principal personagem de seu enredo. Cervantes, no caso, trouxe a figura da cultura popular, já presente na prosa, para o palco, dando-lhe também aí eternidade.
Outros textos seus que ainda guardam interesse e atualidade são O JUIZ DOS DIVÓRCIOS e O RETÁBULO DAS MARAVILHAS, esta última tendo sido inclusive já representada em Porto Alegre.
Deve-se levar em conta que a própria escolha do gênero – o entremes – para criar suas obras, e a sua ordenação final, para a publicação dos mesmos em livro, um ano antes de sua morte, evidenciam algumas de suas preocupações que o distanciam da estética da época e o aproximam dos reformadores da arte dramática espanhola. Um desses elementos, fortemente presente em sua dramaturgia, é a existência de um teatro dentro do teatro, como ocorre com O RETÁBULO DAS MARAVILHAS. O que, de fato, interessa a Cervantes, é fazer com que o espectador acompanhe, par e passo, o que está acontecendo na cena, de modo que as ações se desenvolvem enquanto um presente diante do público, sem as amarras do texto clássico de unidade de tempo e de ação, sobretudo (isto é, tudo tinha de acontecer apenas em 24 horas e num único lugar).
Enfim, Cervantes é, como o grande artista, sobretudo um extraordinário observador de caracteres humanos e, por isso, sua dramaturgia continua viva.
Fonte: Correio do Povo/Artes Cênicas/Antonio Hohlfeldt (a_hohlfeldt@yahoo.com.br) em 19 de junho de 2016