Viver foi a vingança de Dona Hertha, escreve biógrafo sobre sobrevivente do Holocausto que morreu em Porto Alegre
Por Tailor Diniz
Escritor e roteirista. Autor, entre outros, de "A Sobrevivente A21646", que terá nova edição a ser lançada pela BesouroBox
– O Brasil é a minha pátria. Foi aqui que reconstruí a vida, formei uma nova família, me casei, tive filhos, netos. E é aqui que quero morrer. Os brasileiros me receberam muito bem e me deram as oportunidades necessárias para continuar vivendo.
Muitas frases que ouvi de Hertha Spier, a Dona Hertha, desde que comecei a entrevistá-la para escrever A Sobrevivente A21646, são inesquecíveis. Sempre que havia oportunidade, lembrava da sua gratidão ao Brasil.
Falava de sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1946, com a mesma emoção de quando recordava da Bielitz de sua infância, na fronteira da Polônia com a Alemanha, de onde precisou fugir com pais e irmãos, às vésperas da invasão das tropas de Hitler, em 1939. De Bielitz, lembrava os dias alegres em casa, o teatro da cidade, onde era dançarina, e as noites de frio, quando, sem sono, alimentava o sonho de dançar em Viena.
Com o mesmo carinho, lembrava-se do Rio, de sua chegada, ao avistar a Baía da Guanabara. O capitão do navio, para homenagear os que ali ficariam, tocou na viola Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu, então sucesso não só no Brasil, mas no resto do mundo, já que fora trilha sonora de quatro filmes internacionais, entre eles A Filha da Cartomante e Escola de Sereias.
Sobre o Rio, lembraria ainda, com afeto, da primeira frase dita em português, ao ir sozinha à feira livre.
– Eu querer um... abaca-xi.
Ao perceber que o feirante a havia compreendido, vibrou como se fosse mais um estágio de sua libertação, que começara no dia 15 de abril de 1945, no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha.
Dona Hertha passou a infância e a juventude ao lado dos pais e dos quatro irmãos. Caçula, era o orgulho da família. Dançava no teatro municipal e, após as apresentações, saíam para tomar chá e receber o reconhecimento do público. Boa de memória, rememorava, de cor, os textos completos publicados no jornal da cidade sobre sua performance.
Um dia, no entanto, o pai chegou com uma notícia que mudou tudo.
– A partir de agora, nossas vidas não são mais nossas – disse Moritz Gruber.
Hertha, então, viu a mãe, Amalie Gruber, correndo para arrumar as malas. Cedo da manhã, a família embarcava para Cracóvia, a cem quilômetros de distância, onde o pai, ingenuamente, achava que a guerra não os alcançaria. Não demorou, porém, para Hertha ver, pela janela do apartamento onde se escondiam, as tropas marchando e, logo em seguida, a bandeira nazista tremulando no Castelo de Wewel.
Os destinos seguintes foram o gueto de Cracóvia, o campo de Plaszow, construído nas proximidades; Auschwitz, onde Hertha ganhou o número A21646 tatuado no braço e esteve frente à frente com Joseph Mengele; e Bergen-Belsen. Nesse último, ao chegar, só lhe restava a companhia da irmã Gisi. Os pais e os irmãos Max, Henriette e Eugenie já haviam sido assassinados.
Libertada, pesando apenas 28 quilos, foi levada pela Cruz Vermelha para um hospital na Suécia. Reencontrou amigas e fez contato com a família que a receberia no Brasil.
Tão logo chegou, começou a trabalhar com artesanato, atividade que aprendera ainda em Bilietz. Conheceu Siegfried Spier, um representante comercial com quem se casaria em seguida. Vieram para o Rio Grande do Sul e tiveram os filhos Mario e Lúcio. Mas logo viria outra tragédia. Muito cedo, Hertha ficou viúva e teve de assumir os negócios da família para sustentar os estudos dos dois filhos, hoje formados em Medicina. A seguir, vieram os netos e, dias antes de sua partida, um bisneto. Ficou encantada quando esse lhe foi apresentado, em uma foto no tablet.
– O Otto, mãe – apontou um dos filhos. – O seu bisneto.
Ela olhou a imagem com atenção.
– Muito bonito. Grande e gordo – disse e apalpou a tela. – Fantástico. Esse aparelho é fabuloso.
Assim viveu Dona Hertha. Olhando para a frente, com a consciência atenta ao passado, mas sem guardar rancor ou alimentando revanche. Sua única vingança foi a vida que levou depois da tragédia da guerra. Viveu 101 anos, sempre gentil e afetuosa, pintando quadros, fazendo esculturas, distribuindo sorrisos e sendo generosa com os outros. Reconstruiu a família, criou e formou dois filhos, viu os netos crescidos e segurou no colo o primeiro bisneto.
Viver foi a grande vingança de Hertha Spier.